ENTREVISTA
LEPH - Revista Me Conta Essa História Out. 2021 Ano I Nº 010 ISSN - 2675-3340 UFJ.
Por Cássio Santos Franco
[1] Discente do curso de História na Universidade Federal de Jataí - UFJ.
Essa é a primeira de uma série de entrevistas do projeto de pesquisa Me Conta Essa História, realizado pelo Laboratório de Ensino de Pesquisa em História: Dimensões Públicas da História. Visto isso, essa entrevista possui o objetivo de provocar reflexões sobre a estrutura sociocultural das pessoas trans e travestis na sua trajetória educacional, a partir de suas vivências e memórias. Quem me concedeu o prazer desta entrevista é a discente do curso de Psicologia da Universidade Federal de Jataí, Natacha Oliveira Lassi de Ázara, vinte e dois anos de idade, natural de Iporá – GO. Ela diz que iniciou seu processo de transição aos dezenove anos, escondida dos pais. Hoje, segura de si, quebra regras e paradigmas ocupando espaço no ensino superior.
Natacha
Pergunta 1
Cássio: A partir das vivências e memórias acerca da sua trajetória escolar, quais foram os principais problemas enfrentados?
Natacha: Desde o início sempre foi difícil apresentar uma feminilidade característica da minha identidade no âmbito escolar, devido a configurações patriarcais impostas à corpos considerados estranhos, como foi o meu, que sempre foi muito feminino, por exemplo. Por consequência, a forma como eu me comportava provocava um desconforto nas outras pessoas, assim o bullyng era uma realidade imposta a mim. Ir para a escola sempre me trouxe ansiedade, de forma que o bullyng, assim como a falta de interesse dos professores nas problemáticas de gênero e sexualidade, me afastaram do âmbito escolar. Os meus pais, mesmo não sabendo desta minha demanda, me apoiavam e me faziam ir para a escola, me mantendo no sistema. Já no ensino médio, com as minhas questões de gênero basicamente resolvidas, desenvolvi uma forma de rebater essas perseguições vindas, não somente dos meus colegas de classe, como também do corpo docente da escola. Com dezenove anos iniciei minha transição de gênero, foi quando tudo se complicou um pouco mais. Os problemas familiares e a falta de aceitação no meio escolar me afastaram ainda mais dos estudos. Porém, mesmo desmotivada, me mantive no ensino superior, em busca de uma mudança de uma realidade sociocultural.
Pergunta 2
Cássio: Devido as suas experiências na escola, quais foram as atitudes tomadas pelas instituições e por todos que as compõe? Os professores, coordenadores e diretores te deram suporte?
Natacha: Estudei em duas escolas antes de entrar na faculdade. A primeira instituição era particular, em Iporá, no qual estudei da pré-escola até o ensino fundamental I, e buscando na minha memória, me recordo de alguns professores me ajudando com essas questões, porém devido à eu ser muito nova, ainda não tinha essa ideia de gênero desenvolvida na minha identidade. O segundo colégio em que estudei era público, em Caiapônia cursei do ensino fundamental I até o final do ensino básico, e vinda de uma escola particular, onde os professores estavam envolvidos não só com o ensino, mas também com um certo cuidado com os alunos, senti uma diferença na forma de ser cuidada dentro da instituição, pois os professores se mostravam menos interessados e meus colegas de classe se mostravam mais machistas e transfóbicos, fazendo com que eu me fechasse ao ensino e também a minha identidade. Me lembro de um fato que ocorreu no meu primeiro ano do ensino médio, onde uma professora que se intitulava coordenadora pedagógica do colégio me instruiu a frequentar um culto ou igreja para que deus retirasse este “demônio” do “homossexualismo” do meu corpo e de alguns amigos que eu tinha.
Pergunta 3
Cássio: Diante dessa situação, quais medidas foram tomadas?
Natacha: Me lembro que nessa época tinha me assumido gay para a minha mãe, e o assunto sobre transexualidade ainda não tinha acontecido entre nós, e me recordo que contei à ela o episódio, ela foi até a escola e me recordo que poucas ou nenhuma medidas foram tomadas.
Pergunta 4
Cássio: Devido a sua trajetória nas instituições de ensino básico, qual foi a sua perspectiva de futuro após conclui-lo? Quais eram suas vontades, seus sonhos e planos?
Natacha: Com todas as coisas que aconteceram nesse período crítico da minha vida, houve um desinteresse da minha parte pelos estudos. Quando você me faz essa pergunta, me recordo de várias vezes em que coloquei a prostituição como uma forma de sobrevivência, já que as formas tradicionais de “crescer na vida” sempre me foram negadas, tanto no estudo, quanto no trabalho. A prostituição representava uma liberdade financeira e de expressão, de forma que nas ruas eu poderia ver a minha identidade representada, e ainda ganhar dinheiro com isso. O caminho acadêmico nunca me pareceu amigável, e vou te confessar que estar em uma faculdade até hoje é um desafio, mas sempre sonhei em cursar Psicologia.
Pergunta 5
Cássio: E o que não te fez desistir?
Natacha: Na verdade, as formas de trabalho irregulares são como um curativo que sanam os problemas do momento, e eu sempre tive uma vontade muito grande de ser independente financeiramente, ter um padrão de vida mais alto e não depender de ninguém para o meu bem estar, e acabei percebendo que a única maneira de conseguir isso sendo uma travesti, era seguir o caminho da educação tradicional, pois quando se tem um diploma de formação acadêmica, você possui algumas garantias que nos serviços informais é inexistente.
Pergunta 6
Cássio: Quais eram suas expectativas antes do contato com o meio acadêmico? O que você encontrou, superou as suas perspectivas?
Natacha: Sinceramente? Eram bem baixas. Esperava que na academia as minhas vivências do colégio se repetissem, e de alguma forma nos primeiros semestres isso realmente aconteceu. Porém, encontrei você e nossas amigas pessoais, o que me fez lidar melhor com a faculdade em si. A instituição onde curso Psicologia não se demonstra interessada nas questões de gênero e sexualidade, tendo pouquíssimas pesquisas sobre o tema. Ao meu ver, a falta de pesquisas sobre o tema se dá tanto pelo desinteresse, da grande parte, dos professores e a falta de incentivo financeiro da UFJ para o desenvolvimento de investigações científicas, que prioriza outras áreas, como na minha universidade que privilegia os cursos das agrárias, criando assim um ambiente tecnicista e não voltado as questões sociais. Este movimento reflete não somente nas pesquisas desenvolvidas pelo campus, mas também na produção de conhecimento na instituição, fazendo com que a socialização desse corpo discente seja totalmente técnica e não focada nas questões políticas, como o respeito à população LGBTQIA+.
Pergunta 7
Cássio: Na sua percepção, quais os espaços de maior exclusão na academia?
Natacha: Então, depende muito do que você leva em consideração sobre o que é exclusão, pois dentro do meu próprio curso percebo pequenas exclusões que se tratam mais de um mal-estar social que engloba as pessoas cisgeneras, e que por meio de um preconceito próprio delas determinam estigmas para definir as pessoas trans, construindo assim uma rede de pensamentos transfóbicos e machistas que acarretam na marginalização do ser social LGBTQIA+. Exemplificando isso, um professor do corpo docente do meu curso sempre trazia casos de disforia e me usava de exemplo, porém distinto do que o professor acreditava, a disforia não é somente um aspecto da transexualidade, mas também de outros distúrbios dismórfico corporais.
Entretanto, existe as exclusões que são explicitas. Um belo exemplo disto é a falta de pertencimento das pessoas LGBTQIA+ nos espaços que são frequentados, em sua grande maioria, pelos cursos das agrárias. Porém, esse comportamento não se restringe, apenas, aos cursos agrários. Me lembro, de uma vez, na qual um professor do curso de História simplesmente ignorou meu nome social durante todo o período em que cursei sua matéria, me chamando pelo nome de batismo mesmo eu reclamando desse fato.
Pergunta 8
Cássio: E como você se sente em relação a estar rompendo uma estrutura social que é construída para que a população trans não ocupe o espaço acadêmico?
Natacha: Apesar de ser um grande avanço para a minha comunidade estar rompendo com esta estrutura social, não representa grande coisa. A população trans, mesmo com a ascensão de alguns de seus membros continua sofrendo ataques e represálias da grande maioria cis. Estar na faculdade representa nada além do que uma mudança de vida para mim, e não para uma comunidade tão grande como a minha. A marginalização do corpo trans não mudou somente porque algumas pessoas estão na faculdade – utilizando a UFJ como exemplificação, acredito que exista apenas duas pessoas que se reconhecem trans na instituição – sendo assim, acreditar que a ascensão de algumas poucas pessoas trans nessas instituições mudaria em alguma coisa nas políticas públicas, é acreditar em um futuro utópico, pois o contato de pessoas trans no ensino não anula a marginalização da comunidade. Alguns sintomas da segregação voltada à pessoas trans podem ser representados através da imposição do binarismo, pela heteronormatividade compulsória. A religião dominante no Brasil e os seus dogmas, como a estrutura familiar brasileira, que se caracteriza, normalmente, por um homem cis heterossexual, uma mulher cis heterossexual e filhos, e como consequência deslegitima relações afetivas de pessoas não binárias e trans, reforçando preconceitos, estereótipos e machismos presentes na sociedade. Pensando em tudo isso, acredito que os avanços da população trans são positivos, porém não surtem efeitos concretos no dia-a-dia.
Pergunta 9
Cássio: Anteriormente te perguntei sobre as suas perspectivas de futuro após o ensino básico, visto isso também gostaria de indagar quais são suas perspectivas após o encerramento do curso?
Natacha: Espero construir uma carreira com atendimento voltado à comunidade trans, e espero também que a sociedade em que estamos inseridos mude e que esses conceitos heteronormatizadores acabem se extinguindo. Tenho esperança que as visões sobre a comunidade LGBTQIA+ mudem, e que esses (pré)conceitos regidos pelas pessoas cis acabem se tornando coisa de outras épocas, já que se mostram tão ultrapassados e arcaicos.
COMO CITAR
FRANCO, Cássio Santos. ENTREVISTA: Acesso à Educação de Pessoas Trans: Uma Discussão Sociocultural. In:. Revista Me Conta Essa História, a.I, n.10, out. 2020. ISSN 2675-3340. Disponível em: https://www.mecontaessahistoria.com.br/post/002-entrevista-acesso-%C3%A0-educa%C3%A7%C3%A3o-de-pessoas-trans-uma-discuss%C3%A3o-sociocultural . Acesso em:
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