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Rodrigo Martins Oliveira

AUGUSTE DE SAINT-HILAIRE: UMA POSSIBILIDADE AO ENSINO DA HISTÓRIA DE GOIÁS


 

Ensino de História. História Regional. Relatos de Viagem.

 

LEPH - Revista Me Conta Essa História Fev. 2020 Ano I Nº 002 ISSN - 2675-3340 UFJ.

 

Por Rodrigo Martins Oliveira


[1] licenciando em História, UFG/Jataí. Bolsista (CNPq). Universidade Federal de Goiás (UFG), Faculdade de História.

 

Uma breve introdução


O encurtamento da distância entre a pesquisa e o ensino pode trazer caminhos promissores para a história escolar, aquela que mais se aproxima da sociedade concretamente. No entanto, para que este encurtamento seja feito, é necessário criar meios de fazer com que a pesquisa chegue aos docentes nas escolas, já que as pesquisas estão sendo feitas nos cursos de graduação país afora.


Nesse interim, pensando a questão da História Regional em Goiás, existem novas possibilidades de abordagem desta história que vai além dos memorialistas e dos grandes heróis, e que pode dedicar um olhar a outra parcela das gentes que fizeram parte da construção dessa unidade da federação.


As gentes a que me refiro aparecem nas culturas populares que são transmitidas oralmente, nas histórias dos avós e bisavós, nas histórias literárias, nos causos e contos. Para além das representações cristalizadas da história de Goiás, que valorizam a figura do bandeirante – que desconsideram os impactos negativos de seu contato com os povos que já habitavam o lugar –, estão os homens sertanejos, as mulheres sertanejas, os índios submetidos a um tipo de trabalho a que não estavam acostumados, os comerciantes que haviam de lidar com a dificuldade da chegada dos produtos, os padres que aceitavam viver em um local distante e de difícil acesso, os escravos que viviam em condições materiais não tão diferentes das condições de seus senhores. Gentes que estão, também, nos relatos de viagem dos naturalistas viajantes que passaram por aqui no século XIX.


Deslocar o ensino para essa outra possibilidade significa apresentar aos alunos uma história da qual eles fazem parte, da qual eles são agentes de transformação no presente. Como professores de História, não podemos nos abster de nosso papel enquanto docentes de uma disciplina que pretende dar uma contribuição no desenvolvimento dos alunos como sujeitos conscientes, capazes de entender a história não só como conhecimento, antes como EXPERIÊNCIA e prática de cidadania [1].


A questão dos relatos de viagem e suas possibilidades – Saint-Hilaire


Por certo, ao se deparar com a problemática da história de Goiás nos currículos escolares, senão todos, grande parte dos professores recorrem aos textos tradicionais, de mais fácil acesso e que mobilizam as memórias já cristalizadas desta história. Qual seja, de maneira simplória: a idealização do bandeirante como “herói desbravador”; um curto período de progresso e desenvolvimento com a extração aurífera; uma decadência que se prolonga do fim do século XVIII até o fim do século XIX; e a partir da marcha para oeste e da construção de Brasília um ‘bum’ no desenvolvimento econômico e social do estado, já no século XX.


Consoante à “transmissão” deste saber, está exatamente a maneira que esse chega até o aluno. Dentro de sala de aula não só é necessário mudar a perspectiva do conteúdo ensinado, mas da prática pedagógica comum às aulas de História: a tradicional aula expositiva. É possível desenvolver uma prática docente mais dinâmica que assuma uma perspectiva de produzir conhecimento transformador, nisto, revelando opiniões e curiosidades do aluno a respeito de sua realidade e mais, relacionando essa realidade às pesquisas que foram feitas sobre e no lugar e, por isso mesmo, mostrando a importância de sempre questionar o passado [2].


Embora suas ideias e representações da província de Goiás tenham sido utilizadas durante muito tempo (ou até hoje) para confirmar a memória tradicional da história de Goiás, os relatos de viagem dos naturalistas que passaram por Goiás no século XIX constituem-se numa possibilidade de fontes a serem trabalhadas/problematizadas dentro de sala de aula. Um desses naturalistas, o francês Auguste de Saint-Hilaire, que esteve em Goiás por noventa e três dias em 1819, nos apresenta uma imagem da futura província em sua obra “Voyage aux sources du Rio de São Francisco et dans la province de Goyaz”, fragmentada em dois volumes no Brasil em 1975, pela editora da USP e pela Editora Itatiaia, sob o nome de “Viagem à Província de Goiás” e “Viagem às Nascentes do Rio São Francisco”.


A obra do viajante pode ser utilizada como fonte a ser problematizada em sala de aula. Além de estudos ligados a história natural, relacionados à formação dele enquanto botânico, Saint-Hilaire direcionou também seu olhar para outros temas como: cotidiano das vilas e arraiais, tratamento dado aos escravos, cultura dos povos nativos, comércio, festividades, transporte, inserção da mulher na vida social e algumas nuances da vida privada. Vê-se aí inúmeros temas de abordagem a partir de um relato de viagem.


É importante, ademais, pensar a maneira com que se vai trabalhar a fonte. Este âmbito trata da metodologia utilizada em sala de aula para desenvolver os objetivos propostos no tratamento ao tema da história de Goiás. Para tanto, uma possibilidade é o docente fazer uma seleção anterior e levar um trecho do relato que se quer trabalhar, para colocar o aluno em contato com aquilo que é a base do trabalho do historiador, a fonte, de tal forma que esse possa fazer perguntas, problematizar, dialogar com a fonte.


Por exemplo, pode-se partir do seguinte trecho para pensar a questão da inserção da mulher na sociedade colonial goiana e fazer um paralelo com a situação da mulher no estado no cenário atual, dispondo de dados como desemprego, feminicídio, desigualdade de gênero etc.


Durante o dia só se vêem homens nas ruas da cidade de Goiás. Tão logo chega a noite, porém, mulheres de todas as raças saem de suas casas e se espalham por toda parte. Geralmente fazem o seu passeio em grupos, raramente acompanhadas de homens. Envolvem o corpo em amplas capas de lã, cobrindo a cabeça com um lenço ou um chapéu de feltro. Também nessas horas elas caminham umas atrás das outras, e antes se arrastam do que andam, sem moverem a cabeça nem os braços, parecendo sombras deslizando no silêncio da noite. Algumas vão cuidar de seus negócios particulares, outras fazer visitas, mas a maioria sai à procura de aventuras amorosas.
Os olhos negros e brilhantes das mulheres de goiás traem as paixões que as dominam, mas seus traços não têm nenhuma delicadeza, seus gestos são desgraciosos e sal voz não tem doçura. Como não receberam educação, sua conversa é inteiramente desprovida de encanto. São inibidas e estúpidas, e se acham reduzidas praticamente ao papel de fêmeas para os homens (SAINT-HILAIRE, p. 54, 1975).

Além disso, existem pesquisas disponíveis e sendo desenvolvidas sobre o tema. Trabalhos que tratam, por exemplo, da noção de “sertão” e de decadência (noções que os viajantes reiteram em suas viagens) como noções que são construídas por viajantes europeus, os quais estavam ambientados a uma realidade bem diferente daquela encontrada na província e, por essa razão, ao escreverem seus relatos, cristalizam uma memória que não é coletiva, mas de um grupo específico. Em suma, esta memória então “cristalizada” se torna um modelo de explicação ‘canônico’, quase religioso da história do Estado. Não se fala em Goiás sem citar aquele resumo simplório já feito anteriormente.


A possibilidade de se problematizar isso em sala de aula diz respeito de algo muito importante e caro ao saber histórico, que é entender que a história não é algo rígido e fechado, pelo contrário, esse passado é construído e tecido a partir das demandas do tempo presente [3] e, muitas vezes, é usado para justificar/legitimar projetos de poder de grupos, indivíduos etc. No caso dos relatos, então, nos cabe entender então quem foram seus escritores, em que condições escreveram e por que escreveram, e por que durante muito tempo se conservou suas noções de maneira integral e inquestionada. Entendendo as demandas daquele momento, podemos dedicar um novo olhar, fazer uma nova problematização, que responderá a novas demandas e aspirações e, em síntese, este é o fazer historiográfico.

 

COMO CITAR ESSE ARTIGO


OLIVEIRA, Rodrigo Martins. Auguste De Saint-Hilaire: Uma Possibilidade Ao Ensino Da História De Goiás. In:. Revista Me Conta Essa História, a.I, n.02, fev. 2020. ISSN 2675-3340. Disponível em: <https://www.mecontaessahistoria.com.br/post/auguste-de-saint-hilaire-uma-possibilidade-ao-ensino-da-hist%C3%B3ria-de-goi%C3%A1s> Acesso em:

 

REFERÊNCIAS


[1] Parâmetros Curriculares Nacionais: história e geografia / Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. – 3ed. – Brasília: A Secretaria, 2001.

[2] SANTOS, Márcia Pereira dos. As representações de memória e de história de Goiás no ensino de história em Catalão. Anais.. XVII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA. 2013.

[3] BLOCH, Marc. Apologia da história: ou o ofício do historiador. Tradução de André Teles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2001.

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