Distopia. Controle. Reprodução. Mulheres.
LEPH - Revista Me Conta Essa História Abr. 2020 Ano I Nº 004 ISSN - 2675-3340 UFJ.
Por Jéssica Marques da Costa
[1] Graduanda em História pela Universidade Federal de Jataí – UFJ
RESUMO
Este trabalho realizado durante a disciplina de núcleo livre Tópicos em História, literatura e sociedade: Utopia e Distopia, têm por intuito realizar uma análise sobre as representações da condição da mulher na obra distópica de Margaret Atwood, O Conto da Aia (The handmaid’s tale). Levantando questões pertinentes aos processos graduais de dominação, controle dos corpos e da reprodução das mulheres da Republica de Gilead. Refletindo ainda acerca dos limites da literatura distópica de Atwood e a realidade.
Controle, geralmente, é uma questão abordada com frequência por obras distópicas. Em meio ao enredo de tais romances, que se caracterizam por pensar o futuro apocalíptico das sociedades ideais, fica nítido que ao passo que se impõe um sistema imaginado por um grupo de pessoas, é preciso garantir que tal forma de organização seja mantida. De acordo com Gregory Claesys, para alcançar a sociedade perfeita, é preciso submeter todas as pessoas por meios que forem considerados necessários. Na obra de Margaret Atwood não é diferente, entretanto, seu livro possui uma peculiaridade, por vezes, é considerado uma distopia feminista. Segundo Soares (2019) essa obra foge da tradição ao trazer questões como opressão e domínio das mulheres e seus corpos.
No romance da canadense Margaret Atwood, publicado em 1985, a autora escreve sobre um futuro onde os Estados Unidos se torna a República de Gilead, uma sociedade teocrática, patriarcal e puritana. Antes do ápice desses acontecimentos, houveram eventos sintomáticos que estavam sendo sentidos ou não, na vida de determinados grupos da população. As mulheres americanas, passavam por um processo constate e gradual de perda de autonomia. Inicialmente tiveram o acesso as suas contas bancarias bloqueado, houve demissão em massa pois estavam sendo proibidas de trabalharem, de estudar, ler. Com o intuito de limitar ainda mais a vida de determinados grupos, estava sendo realizado um projeto de pauperização que se estruturava partindo do gênero. As mulheres são, portanto, expropriadas de suas vidas e individualidades, e apropriadas pelo Estado da República de Gilead.
A narração da história é feita pela personagem Offred, uma mulher que foi obrigada a ser tornar uma Aia – mulheres férteis que são treinadas e cedidas pelo Estado às famílias da elite que não podem ter filhos para servirem de receptáculos. Na obra, os EUA dos anos 80 vivia uma crise de natalidade, tal crise teria sido justificada por acidentes nucleares, vírus e também ao “excesso” de liberdade da vida moderna das mulheres. Baseados em princípios bíblicos, as mulheres férteis são consideradas uma riqueza nacional, nesse sentido o controle do corpo das mulheres no que se refere a sua reprodução foi totalmente tomada pelo Estado.
O acesso das mulheres ao controle de reprodução estava proibido. Métodos contraceptivos abolidos, bem como qualquer tipo de suporte médico que envolva máquinas, como ultrassom. A moral religiosa torna-se elemento fundamental para a organização social, sendo assim abortos são proibidos mesmo que haja problemas na gestação – o que era comum. A moral religiosa conduzia a vida de todes, pessoas divorciadas, traidores de gêneros [1], mulheres idosas, e ainda pessoas que seguiam outros tipos de religião, como batistas, católicos, ou qualquer pessoa que tivesse praticado ações consideradas imorais.
O cerne de O Conto da Aia, é a disputa profunda de poder em relação as mulheres férteis que deveriam servir ao Estado, e se porventura gerar uma criança, escapar da morte nas Colônias. Mas não somente as Aias, é nítido o controle dos corpos femininos no geral, possuindo útero fértil ou não, a perda de direitos é uma situação visível. Há um intenso controle dos corpos femininos, onde as mulheres são divididas em castas, tendo cada uma, funções delimitadas e úteis a manutenção do sistema e reprodução social.
“Há outras mulheres com cestas, algumas vestidas de vermelho, algumas do tom verde opaco das Marthas, algumas com vestidos listrados, de vermelho, azul e verde, ordinários e feitos com pouco tecido, que são típicos das mulheres dos homens mais pobres. Econoesposas, é como são chamadas. Essas mulheres não estão dividas segundo funções a desempenhar. Elas têm que fazer tudo; se puderem. Por vezes há uma mulher toda de preto, uma viúva. Costumava haver um número maior delas, mas parecem estar diminuindo. Você não ver as Esposas de Comandantes nas calçadas. Só em carros. ” (ATWOOD, 2017. p. 35).
Contudo, a partir do trecho acima podemos perceber que existia uma opressão as mulheres, mas de formas específicas ligadas ao status. Esposas dos Comandantes estavam em uma situação melhor se comparado às Econoesposas, fato que pode ser explicado através de uma visão do contexto econômico e social dessas mulheres. Entretanto, a exposição das vestes típicas de cada casta nos dá a possibilidade de refletir o nível de controle estatal em que estava submetido todas elas, visto que não havia mais a possibilidade de escolhas. Precisam estar envoltas em véus, no caso das Aias hábitos vermelhos, pois seus corpos, seu sangue amedronta. “Nós parecíamos capazes de escolher naquela época. Éramos uma sociedade que estava morrendo, dizia Tia Lydia, de um excesso de escolhas”. (ATWOOD, 2017. p. 36).
Ao longo da imposição desse regime teocrático, as mulheres denominadas de Tias, tiveram um importante papel de disciplinar outras mulheres segundo suas concepções. No Centro Raquel e Lea elas tinham por função educar as mulheres férteis designadas como Aias. Trabalho conveniente para o Estado, visto que elas seriam disciplinadas a partir valores tradicionais de acordo com preceitos bíblicos. Nesse processo de instrução, era comum que se houvesse torturas, punições físicas e psicológicas.
Nessa nova sociedade onde mulheres mais velhas e inférteis eram enviadas para às Colônias, como não-mulheres, a função das Tias era considerada como um privilégio. Tendo em vista que essas mulheres ainda poderiam manter alguns costumes que já eram proibidos para o resto das castas femininas, como ler e escrever. Afinal, as mulheres são relegadas aos silêncios. (PERROT, 2017).
Em meio a essa disciplina que visava controle dessas mulheres para a reprodução, ocorria um apagamento das individualidades com as justificativas do bem coletivo, nesse sentido o treinamento de Aias mostra-se como imprescindível para tornar seus corpos dóceis. Offred não era o nome real da narradora, mas um patronímico [2]. A ideia é que ela, gradualmente, se torna-se nada mais do que um corpo feminino que pertencia a casa de seu Comandante. No entanto, nenhum controle é absoluto.
Através do olhar de Offred, podemos analisar que a obra de Atwood é construída a partir de lembranças de como a personagem vivia antes do ápice do golpe, de trechos de seu treinamento no Centro Raquel e Lea ou Centro Vermelho, e ainda sobre seu cotidiano como Aia em seu posto na residência do Comandante. A personagem em meio a toda repressão ao qual era submetida, depois de ter toda a sua vida e identidade tomadas, e tendo como destino a apropriação de seu corpo, faz um importante exercício de memória, que de certa forma não deixa de ser um tipo de resistência ao regime que visa um apagamento de suas identidades.
É importante salientar que essa narrativa fluida entre passado e presente, dar ao leitor uma sensação de proximidade com a nossa própria realidade ao expor os antecedentes. Nos faz refletir sobre o quanto os direitos já adquiridos pelas mulheres são frágeis, além de nos mostrar como os hábitos e costumes estão ligados a construções sociais. Como quando a Aia, encontra turistas japoneses nas ruas de seu Distrito. Offred e Ofglen (uma de suas parceiras de compras) ficam chocadas pelas roupas das turistas, um choque que passa do um fascínio a repulsa. “Foi preciso tão pouco tempo para mudar nossas ideias a respeito de coisas como essas. Então penso: costumava me vestir assim. Isso era liberdade. ” (ATWOOD, 2017. p. 40).
Ao refletirmos sobre a época em que O Conto da Aia é escrito, podemos perceber que a obra se estrutura a partir de um reflexo da realidade das condições das mulheres, e das consequentes lutas por libertação, pois, a autora parte do diálogo com experiências vividas no contexto dos anos 70 e 80 para criar seu universo distópico. A crise de natalidade e a misoginia não nasceu com a República de Gilead, mas foi tomada como justificativa para criação de novas leis para retomar o crescimento demográfico e para a dita proteção da mulher.
Offred não era uma mulher militante, no entanto vivia sua vida a partir de conquistas de outras mulheres, e em um determinado momento ela reflete sobre as condições na qual as mulheres eram submetidas em seu passado:
“Vivíamos, como de costume, por ignorar. Ignorar não é a mesma coisa que ignorância, você tem de se esforçar para fazê-lo. Nada muda instantaneamente: numa banheira que se aquece gradualmente você seria fervida até a morte antes de ser dar conta. Havia matérias nos jornais, é claro. Corpos encontrados em valas ou na floresta, mortos a pauladas ou mutilados. [...], mas, essas matérias eram a respeito de outras mulheres, e os homens que faziam aquele tipo de coisas eram outros homens. [...] as matérias de jornais eram como sonhos para nós, sonhos ruins sonhados por outros. Que horror, dizíamos, e eram, mas eram horrores sem ser criveis. Eram demasiado melodramáticas, tinham uma dimensão que não era a dimensão de nossas vidas. ” (ATWOOD, 2017. p. 71).
Por basear sua história em opressões reais, a autora demonstra o quanto os direitos das mulheres são frágeis, e evidencia eventos que ocorrem ou ocorreram em algum momento da história. “Tudo o que está na obra já ocorreu alguma vez na história, seja em um Estado totalitário, regime militar ou ordem religiosa” (Nexo, 2017). Em relação a autonomia do corpo feminino, é fato que em grande parte das sociedades, ainda há um rígido controle legitimado, principalmente ao que se refere aos direitos reprodutivos.
Em Calibã e a Bruxa, Silvia Federici reflete sobre a vivência das mulheres em meio ao contexto de transição do sistema feudal para o capitalismo. Federici se propõem a discutir como a Caça às Bruxas foi uma guerra contra a mulher para seu consequente controle. A autora chama nossa atenção para o fato de uma guerra contra às mulheres foi travada a fim de, principalmente, interromper com o controle que as mulheres tinham estabelecido sobre seus corpos e sua reprodução. “A caça às bruxas, literalmente demonizou qualquer forma de controle de natalidade e de sexualidade não procriativa, ao mesmo tempo que acusava as mulheres de sacrificar crianças para o demônio.” (FEDERICI, 2017. p. 174).
Com base nessa perspectiva de controle e relações de poder ao longo da distopia, é observado que o controle dos corpos na República de Gilead torna-se um elemento essencial do Estado, caracterizando o que Michel Foucault chama de biopoder, conceito que ele usa para analisar o controle punitivista, sanitário e sexual dos corpos dos indivíduos pelas forças dominantes. Na obra de Atwood, essa nova sociedade teocrática se utiliza da vigilância constante, e como já visto, de ameaças físicas e psíquicas numa tentativa de homogeneização e alienação dos indivíduos. Pereira escreve que em O Conto da Aia, “os jogos de dominação agem sobre corpos, mas de maneiras diferentes para corpos masculinos e femininos e isso é ressaltado ao analisarmos o romance de Atwood.” (PEREIRA, 2018. p. 22).
OBSERVAÇÕES FINAIS
Ao analisarmos o controle dos corpos femininos em O conto da Aia a partir de uma perspectiva do biopoder e ligarmos com a nossa realidade de fato concluímos que a autonomia dos corpos das mulheres ainda é um desafio por estarmos situados em uma estrutura de opressão, apesar de todos os avanços. A questão dos direitos reprodutivos ainda é um debate constante. Angela Davis em seu livro dirá que foi a partir dos anos 1970 que se iniciou uma campanha mais ofensiva em ralação ao direito legal de abortar. Entretanto, a campanha falha ao manter um discurso de aborto generalizado, que consequentemente levantaria ideias de interromper a gravidez de uma parte das mulheres traria uma solução para os problemas econômicos. Era necessário trazer as questões da natalidade à tona, enfocando nas mulheres pobres e racialmente oprimidas.
“O controle da natalidade – escolha individual, métodos contraceptivos seguros, bem como abortos, quando necessários – é um pré-requisito fundamental para a emancipação das mulheres. ” (DAVIS, 2016. p. 205). No Brasil a descriminalização do aborto ainda é uma questão preocupante. Dentre os debates sobre a autonomia do corpo, o aborto legal é um dos que levantam mais polêmicas, pois se tem a percepção que há uma linha delicada que perpassa a noção moral, cultural com a cientifica.
Segundo a pesquisadora Débora Diniz (2019), “atualmente o aborto é tipificado pelo código penais como contra a vida. De acordo com o artigo 125, a mulher que provoca aborto ou se submete voluntariamente pode ser condenada em até três anos de prisão.” Entretanto, mesmo com a proibição as mulheres continuam interrompendo suas gestações. E, as mulheres em situações mais vulneráveis, são as que tem mais chances de morrer pela falta de assistência. Ainda segundo o texto da Diniz, “tratar o aborto como um caso de polícia e não de saúde pública vai continuar fazendo com que as mulheres abortem sem assistência médica, tendo hemorragias, perdendo a capacidade de ter filhos no futuro e correndo os riscos graves a saúde.”
Em suma, a obra de Atwood é uma distopia que nos deixa em alerta sobre nossa sociedade, principalmente quando traçamos um paralelo com o passado, ou, situamos no nosso contexto social e vislumbramos um avanço conservador e moralista. Na República de Gilead eles regrediram para a condição da mulher natural, e justificaram a perda da liberdade como forma de resolver as questões estruturais que permeavam o ser mulher, “protegendo-as”. Refletir sobre a necessidade de estar vigilantes em relação, nesse caso, aos direitos das mulheres se faz necessário em tempos onde as discussões estão tão imbricadas de narrativas morais.
COMO CITAR ESSE ARTIGO
COSTA, Jéssica Marques da. “Dá-Me Filhos, Ou Senão Eu Morro”: Refletindo Sobre Controle Dos Corpos Femininos Em O Conto Da Aia. In:. Revista Me Conta Essa História, a.I, n.04, abr. 2020. ISSN 2675-3340. Disponível em: <https://www.mecontaessahistoria.com.br/post/d%C3%A1-me-filhos-ou-sen%C3%A3o-eu-morro-refletindo-sobre-controle-dos-corpos-femininos-em-o-conto-da-aia> Acesso em:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ATWOOD, Margaret. O conto da Aia. (The Handmaid’s tale). Rio de Janeiro: Rocco, 2017.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência da vida. Tradução de Sérgio Milliet. 2 ed. Paris, Gallimard, 1967.
CLAEYS, Gregory. Utopia: a história de uma ideia. São Paulo: Edições Sesc SP, 2013.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. Boitempo: São Paulo, 2016.
DINIZ, Debora. Descriminalização do aborto. Revista Ciência saúde coletiva. Vol. 15. Supl.1 Rio de Janeiro, 2010. Acesso em 11 de junho de 2019. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-8123201001160000
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante. 2017.
FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Alburqueque e J A. Guilhon Alburqueque. Edições Graal: Rio de Janeiro, 1988.
SOARES, Ana Lorym. Estética, política e epistemologia a partir do romance distópico O Conto da Aia, de Margaret Atwood.
PEREIRA, Alice de Araújo. The handmaid’s tale e The children of men: biopoder e o controle do corpo feminino nos romances e suas respectivas adaptações. SEMINÁRIO DOS ALUNOS DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO DO INSTITUTO DE LETRAS DA UFF. IX, 2018. Anais do Sappil.
[1] Em O Conto da Aia, traidores de gênero eram geralmente quem não se encaixava e desafiava estereótipos de gênero. Quem não conseguisse se enquadrar era executado ou mandado para as Colônias.
[2] Nas Notas Históricas da obra de Atwood, a autora escreve que: “Offred não nos dá nenhuma pista, uma vez que, como “Ofglen” e “Ofwarren”, era um patronímico composto da preposição possessiva “of”, ou seja, “de”, e o nome de batismo do cavalheiro em questão. No caso o Comandante para quem a Aia servia.”
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