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DOS TRAUMAS DA GRAVIDEZ RESULTANTE DE ESTUPRO AOS DIREITOS DAS MENINAS/MULHERES

A VONTADE DE ESQUECER E O DEVER DE PRESERVAR TAIS MEMÓRIAS.

 

LEPH - Revista Me Conta Essa História Abr. 2021 Ano II Nº 016 ISSN - 2675-3340 UFJ.

 

Por Beatriz Soares dos Santos Silva & Jackson Ferreira Torquato da Silva & Larissa Barth

 

INTRODUÇÃO


Neste ensaio pretendemos fazer uma discussão em torno do caso da menina de 10 anos que foi estuprada pelo tio de 33 anos em São Mateus, Espírito Santo, e teve sua gravidez interrompida, com a necessidade de tratar o aborto como saúde pública e não religiosa, buscando fazer uma ligação com a necessidade de memória desses casos, ainda mais tratando de uma memória sensível, que é memória de sofrimento, dor, descaso, tragédia, e que tem uma temática complicada para discussão no Brasil que é um país onde pode se olhar nos noticiários todos os dias o cultivo da cultura do estupro e a violência contra mulher que implica também no seu silenciamento sobre diversas questões entre elas : o direito de escolher ou não ter um filho.


Há anos a questão de interromper uma gravidez esta entrelaçada com o as questões religiosas e moralistas, principalmente cristã que afirma ser pecado (e entre outras palavras do diabo) pois estão acabando com uma vida segundo as suas representações do que é considerado uma vida. Mas é necessário pensar cientificamente nesse termo, aborto, ainda mais no caso desta criança que além de ser violentada se vê obrigada a ter um bebê não desejado e com o seu corpo não preparado para gera-lo.


Portanto nosso objetivo está no debate de como essas questões estão localizadas na representação e na memória da sociedade, como elas são tratadas e quais disputas estão envolvidas.


DESCRIÇÃO DO CASO


Uma menina de apenas dez anos foi abusada sexualmente por seu tio de 33 anos em São Mateus, Espírito Santo, o estupro resultou em uma gravidez precoce e para preservar a saúde da criança, ela teve sua gravidez interrompida. O caso gerou grande repercussão em todo Brasil e muita revolta a todos, pois qualquer caso de abuso, seja em qual nível for, é revoltante. A sua gravidez foi revelada no dia 7 de agosto de 2020, quando a criança foi até um hospital de São Mateus, reclamando de dores abdominais, ao realizar exames, médicos e enfermeiros constataram que a menina estava gestante de 22 semanas.


Em conversa com os médicos, a criança afirmou que era estuprada pelo tio desde os seis anos de idade, mas não comentava nada pois era ameaçada. O tio fugiu quando a gravidez foi descoberta e foi encontrado no dia 18 de agosto na cidade de Betim, em Minas Gerais, quando então foi preso.


A ordem para interromper a gestação veio do juiz Antônio Moreira Fernandes, da Vara da Infância e da Juventude do Espírito Santo, que atendeu ao pedido do Ministério Público do Estado. No Brasil, o aborto é considerado legal desde 1940, com a lei de número 2.848, do artigo 128, em que a gravidez é resultado de abuso sexual ou põe em risco a saúde da mulher. Ademais, em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que é permitido interromper gestação caso notar que o feto seja anencefálico. Segundo a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, editada pelo Ministério da Saúde, caso seja gravidez que coloca em risco a saúde da mulher, ou que o feto seja encefálico, não há especificidade para realizar o aborto, já em caso de abuso sexual o limite são 20 semanas de gestação ou então 22, caso o feto pese menos 500 gramas.


A criança foi internada primeiramente no Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes (HUCAM), em Vitória, no dia 15, porém a equipe médica do Programa de Atendimentos as Vítimas de Violência Sexual, se recusou a realizar o procedimento. A superintendente do HUCAM, Rita Checon chegou a afirmar que o hospital não realizara tal procedimento por decisão “estritamente técnica”, pois o feto tinha 22 semanas e 537 gramas. Porém tal argumento de Checon acaba por dissimular o fato de que a criança corria risco de vida caso prosseguisse com a gravidez, o que permitiria que o aborto fosse realizado a qualquer momento, sem nenhuma especificidade.


Após tal ocorrido, a Secretária do Estado de Saúde procurou outro hospital que atendesse o protocolo e a menina viajou para Pernambuco. O procedimento de aborto legal foi realizado no Centro Integrado Amaury de Medeiros da Universidade de Pernambuco (CISAM/UPE) no final da tarde de domingo do dia 16 de agosto de 2020.


O caso da criança acabou gerando grande repercussão pelo Brasil, de pessoas que eram contra a efetivação do aborto, e também a favor. Aqueles que apoiavam prosseguir com a gestação ignoravam a probabilidade do feto não sobreviver devido as condições do amadurecimento físico da menina, quanto o fato dela morrer também no parto.


A transferência da criança para o CISAM de Pernambuco era sigilosa, porém a extremista bolsonarista Sara Giromini, conhecida como Sara Winter vazou informações ao fazer uma publicação nas redes sociais divulgando o nome da criança e o hospital. Devido a tal divulgação, manifestantes ligados a religião, parlamentares da bancada evangélica e a grupos de política conservadores e de extrema direita, protestaram contra a efetivação do aborto em frente ao CISAM pela tarde. Houve muito tumulto e os protestantes tentaram invadir o hospital, a polícia teve que ser acionada fazendo isolamento da unidade de saúde.


Mais tarde, na noite do dia 16, houve também ato de apoio ao procedimento e defesa dos direitos da menina/criança, com a presença de mulheres. Tal ato foi muito importante para demonstrar também a solidariedade a vítima, pelas suas escolhas e direitos.


O caso dessa menina de 10 anos salienta bem o fato da “infância roubada”, na qual uma criança está grávida, devido a estupros que vinha sofrendo, e precisa lidar com questões pelas quais nenhum indivíduo devia passar. A saúde mental da garota acaba por sofrer um trauma e demorará para ela recuperar sua sanidade. Enquanto ela devia estar preocupada com atividades escolares e brincadeiras, ela era estuprada por alguém de sua família, recebia ameaças e acabou engravidando. Ao realizar um aborto legal, teve que lidar também com a pressão de pessoas que são contra esse direito. Portanto, foi uma série de acontecimentos prejudicando sua saúde psicológica.


ABORTO E SAÚDE PÚBLICA


No Brasil a pratica do aborto é considerada ilegal, “a legislação brasileira é restritiva em relação ao abortamento, tipificando como crime com penalidade para mulher e para o médico que o praticam” (Drazett, 2012, pág. 86), entretanto, há exceções, só não é considerado crime o abortamento realizado por um médico a fins de preservar a gestante caso a gravidez represente risco de morte, ou seja, resultado de estupro. Segundo Drazett, os meios legais existentes desde 1940 conferem o direito à mulher de abortar, nas situações citadas, porém é desconhecido pela grande maioria e o Estado tem o dever de proporcionar a proteção de sua saúde sexual e reprodutiva da mulher.


Em entrevista a Coordenadora de Serviços de Obstetrícia do hospital Dr. Jayme Santos, a Drª Rosangela Maldonado, diz que são considerados adolescentes aqueles que variam de 11 a 19 anos e a preocupação maior é voltada as jovens gravidas entre 11 e 15 anos, pois o organismo não está totalmente pronto para a reprodução, nem mesmo a estrutura óssea esta devidamente preparada para gestação e o parto. Ela acrescenta uma serie de complicações devido à imaturidade corporal que podem surgir na gestação, como desenvolvimento de hipertensão, parto pré-maturo, pélvis pouco desenvolvida fazendo com que seja necessário recorrer à cesariana. Sem dúvidas o risco maior para se prosseguir uma gravidez em que o corpo não está pronto é a morte do bebê, da gestante ou de ambos. Para a preservação da saúde da paciente, se recorre ao aborto, por se tratar especificamente da integridade da mulher o aborto é considerado como uma questão de saúde publica.


Varias são as discussões sobre esse assunto, “o debate sobre aborto é um espaço de confronto de duas teses pré-estabelecidas: a tese do aborto como uma grave infração moral e a tese do aborto como um exercício de autonomia reprodutiva das mulheres” (Diniz, 2007). Os apoiadores da tese de infração moral chegaram a fazer manifestações contra o procedimento que a menina deveria realizar, mas perante a visão do juiz Antônio Moreira Fernandes, respaldado de diagnóstico medico, era sim necessário o aborto, se tratava de saúde e os radicais opositores não levaram em consideração a vida da criança que corria risco de morte, eram apenas contra o aborto, cegos a qualquer consequência de prosseguir a gestação da menina. Portanto, concluímos que a visão abordada sobre o tema aborto não deve ser no campo moral e sim no campo da saúde, pois é disso que se trata. Não consideramos a saúde apenas física, também a mental, pois para além das transformações que a gestação causa no corpo, há ainda, as transformações sociais que incidem diretamente na saúde mental da mulher, acontece uma serie de mudanças na vida dessas mulheres.


Apesar do direito de interromper a gestação, o fazer é um desafio no Brasil, mesmo no caso da menina de 10 anos onde a gravidez era resultado de estupro e oferecia risco à vida da criança, a concessão para aborto legal enfrentou burocracias e impedimentos técnicos, felizmente ela conseguiu realizar legalmente o procedimento que ainda nos dias de hoje é considerado ilegal e passível de prisão dos envolvidos. Por esse direito representar sempre um desafio, muitas mulheres não conseguem abortar de forma legal, mesmo se enquadrando no perfil necessário para obter o direito, logo, recorrem a clínicas clandestinas onde o risco de morte da gestante é ainda maior do que no hospital. As medidas legais que deveriam garantir o direito de acesso a saúde se tornam uma barreira e ela leva mulheres a recorrerem a procedimentos ditos ilegais e perigosos, quantas mulheres poderiam sobreviver se pudessem gozar do direito existente? Por se tratar da saúde em contextos gerais, da integridade e autonomia reprodutiva da mulher, o tema aborto tem que ser relacionado à saúde e não a moral.


Uma pequena observação, mesmo em casos de gestação na adolescência de jovens a partir de 11 anos, há uma predominância étnica nas jovens gestantes, a maioria esmagadora é negra. Segundo Souto et al. (2017, pag 2913, tabela 3), na pesquisa realizada a fins de investigar vários aspectos das jovens gravidas de 11 a 13 anos, cerca de 75,8% das jovens gravidas eram negras e não notificaram estupro, e cerca de 77,2% das jovens que notificaram estupro também eram negras, o que evidencia os desnivelamentos sócias, a objetificação do corpo negro e a vulnerabilidade social que se encontra a população negra.


A grande recorrência do estupro pode ser um assunto muito sensível de ser discutido, mas tamanho problema social não deve ser deixado de lado jamais, evitar que tal discussão caia no esquecimento, nos mantem ativos para buscar soluções, incentivar denuncias, desenvolver politicas de acolhimento à mulher e leis que assegurem a manutenção de sua saúde. É necessário se lembrar, para que seja possível evitar que outras sejam vítimas desse ato repugnante.


RESSIGNIFICANDO A MEMÓRIA SENSÍVEL


Memorias como essas, sensíveis que provem de um trauma, geram dor e desconforto com sua lembrança, ainda mais em um caso de um estupro que além das consequências psicológicas que a vítima passa tem a gravidez indesejada, mas como é possível guardar essa memória sem que gere um ciclo infinito de traumas para a vítima? Pegando essa memória individual e a colocando em um modo coletivo pois “a memória individual revela apenas a complexidade das interações sociais vivenciada por cada um” (ARAÚJO, SANTOS, 2007, p.96), logo é necessário que toda a sociedade venha pensar e analisar de forma coesa esses acontecimentos para poder ressignifica-los e poder colocar os valores sociais nos seus devidos lugares.


Mas as representações que são feitas a respeito desse tipo de situação transitam por vários discursos, entre eles o religioso e os que a extrema direita carrega, que responsabilizam a vítima em muitos casos por conta da roupa em que estava usando, o local em que estava e a hora, e no desta criança só o fato de ser mulher já carrega a culpa implicitamente. Sobre o interrompimento de sua gravidez esse grupo religioso extremista estava chamando a criança de assassina por simplesmente não querer sofrer as consequências de uma gestação em idade precoce e ter o fruto de um estupro nos braços. Outro discurso que implica uma representação sobre é o do movimento feminista que luta por liberdade de ser sem julgamentos e violências contra mulheres, que enxergam que o interrompimento de uma gestação deve ser um direito e não um crime principalmente para essa menina de dez anos. Essas representações distintas vivem em disputas, mas podemos ver qual está mais a frente por conta de como e tratado a luta pelo direito do aborto no Brasil e “a lembrança, contudo, está vinculada àqueles que têm o poder, pois são eles que decidem quais narrativas deverão ser lembradas, preservadas e divulgadas” (ARAÚJO; SANTOS, 2007, p.99).


Logo é necessário derrubar esse discurso que ocupa o lugar de poder, é necessário ressignificar e quebrar o silencio sobre o assunto e a maneira como ele é tratado, Pollak diz que “em face dessa lembrança traumatizante, o silêncio parece se impor a todos aqueles que querem evitar culpar as vítimas. ” (Pollak; 1989, p.6), mas quando se silencia deixa espaço para outras representações tomarem posição e controle sobre o assunto.


Portanto é crucial ressignificar essas memorias sensíveis, tratar de forma diferente as situações de estupros que ocorrem todos os dias no Brasil, desconstruir essa cultura do estupro presente na nossa sociedade que há muito tempo foi forjada e tem grandes impactos até hoje nas relações sociais. Importante pensar em como esses casos adoece a sociedade, em como que sempre a mulher obtém a culpa do ato enquanto os homens cumprem penas mínimas ou até inocentados como no caso da Mariana Ferrer em que o violentador André de Camargo Aranha foi implicado em estupro culposo, quando não há intenção de estuprar, termo que nem existe legalmente apenas criado pelo o patriarcado para proteger os seus. Enfim temos a necessidade de voltar para os fatos passados e olha-los com um pensamento crítico, humano e coeso, Araújo e Santos dizem que

A volta ao passado pode conter uma possibilidade de conhecimento, mas traz também uma renovação de sentimentos anteriormente reprimidos. Ainda que a representação seja possível, basta saber se ela é desejável, se ela é capaz de integrar o trauma em nossas vidas de modo articulado e não patológico. (ARAÚJO; SANTOS, 2007, p.102)

CONCLUSÃO


Partindo para as considerações finais enaltecemos momentos como esses de debate sobre aborto, estupro e gravidez na adolescência, principalmente de casos passados como o da criança de 10 anos, para uma possível reflexão coletiva sem as amarras do machismo com pretensão de não se deixar esquecer e evitar novos casos como esse ou que os próximos julgamentos quanto na perspectiva social e legal sejam realmente justos e que os violentadores sejam responsabilizados pelos os seus atos e que não recaia sobre as vítimas uma culpa que não pertence a elas, muito menos em associação com o aborto, que deve ser sempre tratado como questão de saúde pública e não com ideais cristãos ou partidários.

 

COMO CITAR ESSE ARTIGO


SILVA, Beatriz Soares dos Santos; SILVA, Jackson Ferreira Torquato da; BARTH, Larissa. Dos Traumas da Gravidez Resultante de Estupro aos Direitos das Meninas/Mulheres: A Vontade de Esquecer e o Dever de Preservar tais Memórias. In:. Revista Me Conta Essa História, a.II, n.16, abr, 2021. ISSN 2675-3340. Disponível em: . Acesso em:

 

REFERÊNCIA


ARAÚJO, Maria Paula Nacimento; SANTOS, Myriam Sepúlveda dos. História, memória e esquecimento: Implicações políticas. Revista Crítica de Ciências Sociais, ed. 79, 2007, p. 95-111



DINIZ, Debora. Aborto e saúde pública no Brasil. Cadernos de Saúde Pública [online]. 2007, v. 23, n. 9. Disponível em: <https://www.scielosp.org/article/csp/2007.v23n9/1992-1993/>. Acesso em 21 de novembro 2020.


DREZETT, J; PEDROSO, D; GEBRIM, L; et al. Motivos para interromper legalmente a gravidez decorrente de estupro e efeitos do abortamento nos relacionamentos cotidianos das mulheres. São Paulo: Reprod clim, . 2011. p. 85 - 91. Disponível em: <https://www.researchgate.net/profile/Jefferson_Drezett/publication/264672739_Grounds_to_legally_interrupt_pregnancy_resulting_of_rape_and_effects_of_abortion_on_women_daily_relations/links/53eabbbe0cf2dc24b3ce721e/Grounds-to-legally-interrupt-pregnancy-resulting-of-rape-and-effects-of-abortion-on-women-daily-relations.pdf>. Acesso em: 21 de novembro de 2020.


Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/estatisticas/. Acesso em: 18 nov. 2020


GVNEWS TV. Gavidez na adolescência é de risco e preocupa especialistas. 2015. Disponível em: <https://youtu.be/mHmVYZnf5go>. Acesso em: 21 de novembro de 2020.



POLLAK, Michael. Estudos Históricos : Memória, Esquecimento, Silêncio. Vol. 2, n. 3, Rio de Janeiro, 1989, p. 3-15


SOUTO, Rayone Moreira Costa Veloso et al. Estupro e gravidez de meninas de até 13 anos no Brasil: características e implicações na saúde gestacional, parto e nascimento. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2017, v. 22, n. 9, p. 2909-2918. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1413-81232017229.13312017>. ISSN 1678-4561. https://doi.org/10.1590/1413-81232017229.13312017. Acesso em 21 de novembro de 2020.

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