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ENSAIO SOBRE A RESSIGNIFICAÇÃO DO HOSPÍCIO PEDRO II PARA A UNIVERSIDADE DO BRASIL

COMO FATOR CONTRIBUINTE PARA O ESQUECIMENTO DA MEMÓRIA TRAUMÁTICA [1].

 

LEPH - Revista Me Conta Essa História Abr. 2021 Ano II Nº 016 ISSN - 2675-3340 UFJ.

 

Por José Antônio Mendes [2] & João Vitor Leal Lobato [3] & Júlia Khouri [4]


[2] Discente do Curso de História pela Universidade Federal de Jataí.

[3] Discente do Curso de História pela Universidade Federal de Jataí.

[4] Discente do curso de Psicologia pela Universidade Federal de Jataí.

 

INTRODUÇÃO

No início do século XX, a ideia de modernização urbana chega ao Rio de janeiro. A cidade passaria por um período histórico de reforma do espaço urbano por meio de um plano de modernização pelo poder municipal. Neste contexto, alguns edifícios antigos, mesmo que sendo significativos na construção do imaginário social e de identidades da sociedade, foram vistos como representação de atraso social.


Um exemplo e por conseguinte, foco deste ensaio, é o primeiro hospício do Brasil, o Hospício Pedro II (1840-1944), conhecido como Hospital Nacional dos Alienados, ressignificado e esquecido a partir de sua degradação, entregue para a chamada Universidade do Brasil, sendo hoje a Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Diante da importância social que o Hospício de Pedro II carrega, e pela tradução simbolizada da ideia de isolamento dos alienados no coletivo social, é possível observar que ele representa um local símbolo de diversas experiências traumáticas, que foram esquecidas e ressignificadas, se tornando um espaço de razão e conhecimento.


Desta forma, a partir de discussões feitas na disciplina “Patrimônio Cultural da Saúde: Disputas por memória” ofertada pelo Professor Doutor Éder Mendes de Paula, procuramos analisar o tipo de memória construída e sua representação social, a partir do seguinte questionamento: a ressignificação do Hospital Nacional dos Alienados em uma instituição produtora de conhecimento configurou como forma de esquecimento da memória traumática?

Trazendo então como base para este ensaio, a discussão entre o dever de lembrar e a vontade de esquecer, em torno de um estudo da memória traumática e sua relação com a ressignificação de um local produtor de experiências que remetem a dor e ao sofrimento.


HOSPITAL, MEMÓRIA E RESSIGNIFICAÇÃO


Se existe classe que mereça uma vigilância esclarecida, benévola e ativa, é a dos doidos Destes, aqueles que pertencem a famílias abastadas ou são objeto da caridade vivem pela maior parte isolados em quartos fechados, vigiados, alimentados e tratados, principalmente quando são atacados de monomania com delírio, ou idiotia, ou paraplegia. Neste caso não fica a humanidade em falta com estes desgraçados, mas em desforra a sua presença é um fardo penoso, uma vizinhança incômoda e às vezes insuportável para os vizinhos, e a reclusão a que são condenados em aposentos pequenos e pouco arejados é quase sempre ineficaz ao curativo. (SIGAUD, 1835, p. 559)

O Hospital Pedro II, criado em 1841 na cidade do Rio de Janeiro, foi a primeira instituição regida pelo Estado brasileiro destinada ao tratamento dos alienados, ou como caracterizado acima, lugar de pertencimento destes indesejados socialmente. Até aquele momento, os loucos não possuíam qualquer assistência sob o ponto de vista governamental, estes pertencendo as ruas, perambulando livremente, ou enclausurados como feras, trancafiados em cadeias e nas Santa Casas de Misericórdia.


O Hospício Pedro II foi resultado da reestruturação dos serviços prestados pela Irmandade de Misericórdia Carioca, sendo esta Instituição a investida concreta sob a assistência psiquiátrica, surgindo assim o primeiro Hospício Nacional. Investida que ainda institucionaliza e enclausura a “desrazão”, o desatino e toda forma de anormalidade, porém a partir de agora, sob a legitimidade do Estado.


Simbolicamente, esta instituição representaria o interesse da Corte brasileira de anunciar ao Ocidente a participação do Brasil ao mundo civilizado da época. Uma Nação suficientemente evoluída, tanto na sua capacidade de produzir loucos, quanto na sua capacidade de ordená-los seguindo a lógica de civilização do período.


Michel Foucault (2007; 2011) nos embasa e conceitua o hospício como um dos mecanismos de poder disciplinar que age no esquadrinhamento dos corpos e condutas, com a intenção de torna-los uteis de acordo com os interesses estabelecidos através das relações de poder. A disciplina estabelece a ordem na instituição e, ao mesmo tempo, dispõe de certos modos de exercício do poder, produzindo e reverberando certo “estado de dominação” (FOUCAULT, 2006).


Enclausurados entre os muros da instituição e pertencentes a certa trama discursiva, os indivíduos são reduzidos a categoria de “loucura”, sendo os loucos incluídos no ordenamento social, violentamente excluídos, silenciados e deixados para morrer. Segregação que acontece por ser considerados “potencialmente perigosos” a um mundo regido e pensado a partir de uma lógica europeia civilizatória. (perigosos a ordem social, à raça humana e pela transição hereditária de suas lembranças e memórias). Considerados como exponencialmente perigosos, os loucos estão fadados ao esquecimento, em uma operação ativa das relações de poder que são capazes de produzir “vidas memoráveis” e “vidas esquecíveis”. Podendo-se dizer, portanto, que há um limiar entre discursos e o poder, que por sua vez coloca para funcionar os mecanismos de memória e esquecimento.


Com quase um século de funcionamento, em 1944, a população carioca viu o prédio localizado na praia vermelha se esvaziar. Praticamente em ruínas e sem condições de funcionamento, os alienados foram transferidos para outros Manicômios, como indivíduos indigentes, fadados somente a loucura e ao esquecimento. As Instalações da instituição foram doadas para a Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de janeiro), sem nenhum cuidado para se lembrar, ressignificando todo um século de memórias e traumas a um local produtor de Ciência e novas memórias.


Neste mundo ressignificado, recheado por fatos de um passado que já se foi; existem notícias, lembranças, histórias, fatos, práticas, discursos, personagens, uma gama infinita de recursos que nos remetem à presença do tempo e que regem como as relações se dão no presente e no futuro. Alguns desses rastros continuam, outros se apagam.


Dentro desse processo regido por determinados interesses, existem os vestígios que se perdem por escolha ou por acaso, do que é permanecido e do que é enterrado. Essa decisão do que fica e do que se vai é problemática na sua avaliação e determinação, pois cada sociedade e consequentemente seus indivíduos, constroem as suas próprias formas de lidar com o passado. Sendo um desses rastros; a memória.


A memória é o exercício do pensamento simbólico, formada através de uma gama variada de representações que vão além de limites geográficos e determinações temporais. Recolhe fragmentos que ajudam na reconstrução e manutenção de identidade. Os indivíduos tecem suas memórias através de relações com outros indivíduos. As lembranças são retiradas através de inúmeras relações sociais. Ela é depositária dos valores culturais estruturantes da convivência de um grupo, tornando-se reservatório dos processos de identidade. Portanto a memória individual não pode ser separada de uma memória coletiva, o indivíduo não tem por si só o controle do resgate do passado, uma vez que ele é constituído de interações sociais. (BARROS, 1999).


Quando uma lembrança vivida diz respeito a uma comunidade, ela vai se tornando de certa forma, um patrimônio. Suas informações vão sendo repassadas e vão tecendo a história de um grupo. Geralmente, as memorias coletivas tendem a idealizar o passado, que reforça, esquece ou ressignifica acontecimentos. A memória coletiva torna-se seletiva e o processo de esquecimento torna-se um instrumento construtor da mesma.


Uma memória coletiva forma-se por fatos e aspectos importantes, considerados legítimos para aquela sociedade, configurando-se em práticas e locais de rememoração elementos que soldam a versão de um passado coletivo, selecionado e seletivo. São os chamados lugares de memória, descrito por Pierre Nora.


Para Pierre Nora (1993), a memória só é revivida e ritualizada numa tentativa de identidade de seus indivíduos e que a história confere lugares onde indivíduos podem pensar, que são feitos de lembranças, ao mesmo tempo que são produzidos esquecimentos. “Os lugares de memória são, antes de tudo restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ele a ignora” (NORA, 1993, p. 12). Ao ver que a memória coletiva é constituída por mecanismos de exaltação e esquecimentos, não há uma memória espontânea verdadeira, e sim a possibilidade de acesso a uma memória reconstituída e que dê sentido a uma identidade, ritualizando uma memória-história que ressuscite uma lembrança constituidora.


Nas teorias de Nora e Barros explanamos acerca da formulação da memória e o esquecimento como constituinte. Escolhe-se o que se quer lembrar e esquecer. A lembrança, contudo, está vinculada as relações de poder, pois é a partir desta que decidem quais narrativas deverão ser lembradas, preservadas e divulgadas. Michel Pollak (1989), discorre sobre processos de dominação e manipulação de memórias. Na existência do afastamento entre uma memória dominante, idealizada e ressiginificada pelos que detém o poder de narrar e as memórias ditas “subterrâneas”, caracterizadas pelo silenciamento, pelo não dito dos grupos dominados.


Tais situações tornam-se mais problemáticas, quando os locais de memórias envolvem o Trauma, como ocorre no Hospício Pedro II. Ao evocarmos memórias traumáticas, não se retomam apenas conhecimentos passados, reconstruídos. Elas podem levar os indivíduos a viverem tais experiências, trazendo novos sentimentos, podendo ser negativos e ruins, havendo certa relação direta entre o evento e a representação.


O Hospício como local de reclusão, isolamento e marginalização social, tendo como característica a vigilância insuportável e infinita sob os internos, causando aflição e medo, na medida que, mesmo que saíssem do hospital para passeios rotineiros, estes estavam sob o olhar de enfermeiros, sendo impossível a fuga desta vigilância, a menos que se encaixem nos padrões normais, fora das zonas patológicas sociais. O trauma está presente em todas as medias neste espaço.


A ressignificação de trauma, como memória do passado, para se tornar orgulho nacional no presente e no futuro, representado por uma Academia de Ciências e Conhecimento, elevando a redondeza ao caráter intelectual, sendo um estranho processo de transformação do espaço da loucura, da “desrazão” e da irracionalidade, para um espaço que privilegia a racionalidade, o Conhecimento e a Ciência, o oposto que ocultaria intencionalmente todo o trauma vivido pela instituição, e ressignificaria todos os sentidos daquele espaço de memória.


Porém, percebendo tais esquecimentos, e notando através deste processo as relações de poder e os interesses por esquecer as práticas daquele lugar, como perceber e acessar tais memórias traumáticas estando em um lugar de distância temporal? Neste momento, as narrativas e o testemunho de quem esteve no lugar de trauma, e são até hoje enclausuradas nestas memórias traumáticas, é de suma importância para o olhar historiográfico de análise destas memórias.

Portanto, a análise dos relatos de Lima Barreto por exemplo, que foi um dos internos do Hospício Pedro II em 1914 e em 1919 por alcoolismo, é essencial para acessar as nuances destas lembranças de indivíduos que se percebem como injustiçados e se identificando sob o mesmo fator e condição social, Lima Barreto na função de testemunho e percebido como um imaginário de quem esteve e viveu aquele momento.


Na visão de Lima Barreto, os problemas da cidade estavam no advento da modernidade (MACHADO, M. C. T, 2002. Apud SANTOS, 2010 p. 65). Dentre tais problemas o autor destaca as injustiças sociais, a imprensa e as formas políticas da época republicana. O autor procurava exprimir toda sua indignação e revolta a partir das injustiças sofridas, passou a ser rotulado como “louco” e levado a um local silenciador, ação comumente utilizada para “calar” indivíduos contestadores.


O Hospício enfim, foi retratado pelo autor como um espaço de reclusão, isolamento e marginalização social e que segrega e categoriza indivíduos por pavilhões. Espaço de alienação onde o tempo é marcado pelo horário das refeições (SANTOS, 2010, p.78). O autor registra suas memórias que demonstram seu desgosto pela sociedade, por suas armadilhas e negligenciamentos, arruinaram toda uma vida por meio do Hospício e sua exclusão.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


A demolição do primeiro hospício do Brasil, junto a suas experiências de dor e sofrimento, representa o esquecimento de toda uma gama de memórias, identidades e lembranças através da construção de uma instituição, tida como motivo de orgulho nacional, produtora de Saber e referência quando se pensa em razão naquele período, A Universidade do Brasil, processo que traduz certo desejo excessivo de esquecer determinada memória traumática, junto dos personagens tidos como degradadores da civilidade nacional; os loucos.


Em torno desse pensamento, o ensaio propôs abrir uma discussão, por meio de um viés teórico, a partir da ressignificação do hospital no processo de esquecimento dos trágicos acontecimentos relatados.


No contexto histórico tanto da época da construção do hospício, quanto de sua demolição, percebe-se um ponto em comum: o poder governamental em cima das decisões tomadas sobre o local. Um claro processo de controle da própria narrativa, estabelecendo laços hierarquizantes de poder, definindo o destino dos personagens tidos como loucos, destino de suas existências enquanto excluídos, e de suas memórias, enquanto esquecidas.


Foi perceptível, que apesar da dificuldade de superação e confronto do passado, devemos entender, que é extremamente importante os registros históricos que mostram a representação significativa da sociedade da época e como esses fatores atravessaram gerações, produzindo identidades e unindo lembranças.


Ao reconhecer o seu dever de lembrar e eternizar memórias experienciadas no hospital e na sociedade da época, o escritor Lima Barreto, relatou por meio de seus livros, os acontecimentos presenciados por ele no período em que foi internado no hospício, sendo, por fim, um claro exemplo de narrativa testemunhal representando o compromisso ético com as vítimas e com a sociedade. Concluindo portanto a importância discursiva e memorial do testemunho.

 

COMO CITAR ESSE ARTIGO

MENDES, José Antônio; LOBATO, João Vitor Leal; KHOURI, Júlia. Ensaio Sobre a Ressignificação do Hospício Pedro II Para a Universidade do Brasil Como Fator Contribuinte Para o Esquecimento da Memória Traumática. In:. Revista Me Conta Essa História, a.II, n.16, abr. 2021. ISSN 2675-3340. Disponível em: . Acesso em:

 

REFERÊNCIA


BARROS, José Márcio. Cultura, Memória e Identidade: contribuições ao debate. Cad. Hist. Belo Horizento, v. 4, n. 5, p. 31-36, 1999.


FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso: Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola. 2011.


FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis; vozes. 2011.


FOUCAULT, Michel. História da Loucura: na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva. 2007.


MONTEIRO, Flávia Azevedo. O Patrimônio Arquitetônico da Saúde. Discussões sobre Arquitetura Hospitalar brasileira no Século XIX. 2014. Dissertação (Mestrado em Artes) da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2014.


NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, n. 10, p. 7-28, 1993.


POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos. Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.


RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: UNICAMP, 2010.


SANTOS, Frederico da Costa dos. Hospício Nacional dos Alienados (1890-1930): relações de poder e memória coletiva o espaço asilar. A experiência de Lima Barreto. Dissertação (Mestrado em Memória Social) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2010.


SIGAUD, José Francisco Xavier. Reflexões acerca do trânsito livre dos doidos pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro. Diário da Saúde ou Efemérides das Ciências Médicas e Naturais do Brasil v. I, n-1, p.6-8, abril. 1835. p.559.


TREVIZANI, Tiago Marcelo; SILVA, Rosane Azevedo Neves da. Cartas do Hospício: Memória e esquecimento – rastros de insurgências. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de janeiro, v.19, n.1, p. 313-336, 2019.

 

[1] Texto produzido a partir da disciplina Patrimônio Cultural da Saúde: Disputas por memória, ofertada pelo Professor Doutor Éder Mendes de Paula.

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