UMA QUESTÃO JUSTIFICADA ATRAVÉS DE UMA POLÍTICA DE MODERNIZAÇÃO INSTAURADA NA CIDADE DE GOIÂNIA.[1]
LEPH - Revista Me Conta Essa História Fev. 2021 Ano II Nº 014 ISSN - 2675-3340 UFJ.
Por Dianna Moreira Mendonça & Shirley de Oliveira Pereira
[1] Dianna Moreira Mendonça - Discente do curso de Psicologia na Universidade Federal de Goiás, Regional Jataí. [2] Shirley de Oliveira Pereira – Discente do curso de Psicologia na Universidade Federal de Goiás, Regional Jataí.
RESUMO
Este ensaio versa sobre o processo de construção da estigmatização da loucura na cidade de Goiânia como uma estratégia de retirada de determinados atores sociais do cenário das ruas em um processo de modernização através de uma aliança entre Estado e medicina. A metodologia utilizada foi de revisão bibliográfica. Os resultados do ensaio apontam que o Estado e a sociedade agem através do apagamento das memórias sobre o Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho para a construção de uma identidade modelo para a população, residindo nesse fato a importância dos suportes de memória como os testemunhos para garantir uma narrativa mais condizente com os acontecimentos verídicos.
Palavras chaves: Estigmatização, Loucura, Manicômios, Modernização de Goiânia, Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho.
Tortura. Fome. Sede. Descaso. Morte. Esses são os aspectos que caracterizam o dia a dia no Hospital Colônia de Barbacena, mais comumente chamado de Colônia, sendo um dos maiores manicômios do Brasil, localizado na cidade de Barbacena no estado de Minas Gerais. Essas caracterizações, infelizmente, não foram exclusividade do hospital colônia, pois também eram aspectos presentes no cotidiano dos vários outros hospícios espalhados pelo Brasil, dentre eles o Adauto Botelho, localizado na cidade de Goiânia, no estado de Goiás.
Consoante a isso, neste ensaio objetivamos analisar o processo de construção da estigmatização da loucura em Goiânia, com o intuito de compreender como a disseminação estratégica de pensamentos de modernização retiraram atores sociais indesejados das ruas e os enclausuraram em instituições psiquiátricas os mantendo à margem da sociedade, resultou na concretização de uma nova narrativa sobre a recém nomeada capital de Goiás.
Inicialmente, é preciso que haja o entendimento sobre como aconteceu o surgimento dos manicômios no Brasil. De acordo com a Profa. Maria Helena Itaqui Lopes (2001), presidente do Comitê de Ética em Pesquisa no Hospital Psiquiátrico São Pedro, localizado em Porto Alegre, tem-se que:
No século XVII já existiam hospitais para os excluídos socialmente, grupo constituído pelos doentes mentais, criminosos, mendigos, inválidos, portadores de doenças venéreas e libertinos. Embora a loucura tivesse passado do campo mitológico para o âmbito médico, ainda a medicina não tinha elementos para defini-la. Surgiu, no século XVIII, Phillippe Pinel, considerado o pai da psiquiatria, que teve o mérito de libertar os doentes mentais das correntes. Os asilos foram substituídos, então, pelos manicômios, estes somente destinados aos doentes mentais.
Nesse sentido, tem-se que os espaços manicomiais foram criados inicialmente com o objetivo de serem ambientes disciplinantes, em que os sujeitos classificados como “anormais”, seriam ensinados a agir dentro dos padrões esperados socialmente, alcançando modelos comportamentais compreendidos como “normais”.
Assim como indicado por Foucault (1972) em sua obra “A História da Loucura”, a loucura e a sanidade representam uma construção social a partir de unidades de significados em acordo com o que o “homem” pensa, compreende e avalia. Não obstante disso, Bock (2003) diz que cada sociedade cria sua “própria zona patológica”, ou seja, podemos entender que o limiar da normalidade pode ser alterado com o intuito de atender a interesses sócio-políticos específicos.
Desse modo, manicômios foram destinados a receber não apenas indivíduos considerados mentalmente incapazes, mas a servir também como depósito daqueles que eram vistos como ameaçadores da organização social, sendo esses os andarilhos, vadios, alcoólatras, agitadores, portadores de deficiências, as mulheres que eram consideradas difíceis por questionarem as decisões ditadas pelo machismo e pelo patriarcado, entre tantos outros indivíduos que tiveram seus direitos e papéis sociais negados, em função de uma modernização estadual inserida em uma política sanitarista.
O fenômeno da loucura, portanto, relaciona-se à constituição da forma de pensar, de organizar a sociedade, de produção de saberes e dos exercícios do poder (TORRES; AMARANTE, 2001). Destarte a isso, a criação do Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho interliga-se a nova lógica social de modernização da cidade de Goiânia durante o governo de Pedro Ludovico Teixeira, que tinha como objetivo desligar-se da ideia de atraso que a sociedade sertaneja carregava e construir uma nova narrativa social de progresso.
Com o intuito de legitimar o que se intencionava construir, o Governo de Goiás concedeu uma maior autonomia e poder de atuação aos saberes médicos psiquiátricos. Sua atenção voltou-se para a sociedade, iniciando um processo “higienista” e profilático. Seu foco se destinava ao cumprimento do papel social, supervisionando a forma que os sujeitos se portavam, vestiam, falava, interagiam e se relacionavam (DE PAULA, 2019).
Deste modo, a psiquiatria se transformou em um dispositivo de controle sociopolítico, retirando do convívio social e internalizando em manicômios as pessoas que por suas diversidades não representavam o desenvolvimento pelo qual a cidade passava. Nesse contexto de união entre Estado e medicina se estabelece as primeiras categorizações sobre a loucura no estado de Goiás (DE PAULA, 2019).
Os “tipos urbanos” rotulados como alienados considerados perigosos para si e para a sociedade eram isolados em instituições psiquiátricas. O isolamento terapêutico era justificado no afastamento desses indivíduos de um ambiente que causava ou intensificava a alienação (TORRES; AMARANTE, 2001).
Dentro dos espaços manicomiais, compreendia-se a melhora através de regras, disciplina e reeducação moral dos internos (TORRES; AMARANTE, 2001). Assim, para atingir a “cura” utilizavam técnicas de tratamento como camisas de força, amarras, cadeiras giratórias, hidroterapia, castigos corporais (ZURITA et al., 2013) eletrochoque e em alguns casos até lobotomia. Diante disso, é possível visualizar a desumanização que os ditos “loucos” estavam expostos, em que o uso de condutas violentas e arbitrárias eram legitimadas como ações terapêuticas de controle dos corpos.
Frente a esse cenário de horror, em que ocorria a exposição do fracassado e precário modelo das instituições de saúde, que negavam os direitos básicos de seus pacientes e os tratavam de forma negligenciada, tem-se o surgimento do movimento denominado como Reforma Psiquiátrica no Brasil, que se refere ao:
modelo psicossocial em saúde mental tem a finalidade de resgatar atuações voltadas para a o cuidado e (re)inserção social com foco na pessoa concreta, seu sofrimento e sua história de vida, e não na doença (Silva, 2013). Assim, considera “inaceitável a utilização da psiquiatria como instrumento de segregação e controle social. Desvincula-se do foco na doença mental para apropriar-se da atenção psicossocial como meio de resgate da cidadania e autonomia do sujeito que sofre. (ARANTES; TOASSA, 2017)
Diante da narrativa histórica que conta sobre a implantação desse novo modo de fazer psiquiatria, é preciso lembrar que esse processo não se deu de forma uniforme. Foi preciso que a implantação das novas redes de serviços psiquiátricos substitutivos em saúde mental acontecesse de forma gradativa.
Em Goiânia, a efervescência do debate antimanicomial se deu com as conquistas do movimento sanitarista, criação do Sistema Único de Saúde e promulgação da Lei Federal de Saúde Mental n.º 10.2016/2001, de modo que as primeiras práticas que se diferenciam do tratamento psiquiátrico clássico começaram no Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho, através de um pequeno grupo de profissionais que atendiam no modelo Hospital-dia, no qual alguns pacientes podiam ir embora para casa no final do dia (ARANTE; TOASSA, 2017).
No entanto, mesmo sendo pioneiro na adesão do atendimento mais humanizado aos pacientes portadores de distúrbios mentais, o Hospital Adauto Botelho foi desativado em função das péssimas condições de funcionamento das suas instalações.
Consoante ao exposto e levando em consideração o processo de mudanças sofridos pela área da saúde mental, o encerramento das atividades do Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho representa uma conquista da luta antimanicomial e a elaboração do esquecimento de uma parte extremamente importante e significativa na construção da narrativa da história da saúde do estado entrelaçada em sua estrutura, localidade e registros.
Em relação ao esquecimento dessa memória, é preciso lembrarmos do que Joel Candau postula em sua obra “Bases antropológicas e expressões mudanças da busca patrimonial: memória, tradição e identidade”, que:
Não há memória possível, dizia Halbwachs, fora dos quadros dos quais os homens, vivendo em sociedade, se servem para fixar e reencontrar suas lembranças. (1925, 1994, p.79 apud CANDAU, 2009, p. 52).
Dessa forma, podemos atribuir o silenciamento das memórias sobre a construção da psiquiatria no nosso país, ao desejo de esquecer todo o conteúdo de dor e sofrimento causado pelos traumas vivenciados pelos internos. Ademais, tem-se a necessidade de garantir uma narrativa sobre a consolidação da cidade que favoreça a identidade do grupo e sirva de modelo para as gerações futuras.
Parafraseando a autora Jamile Borges da Silva (2019, p. 243), a memória consiste em um artifício discursivo e político que ajudou/ajuda a fabricar as múltiplas interpretações sobre o Brasil, operando em paralelo e ao lado de categorias como etnia, nação, território, identidade, auxiliando na difícil tarefa de ancorar os fatos reais ou esquecidos, de tal modo que as lembranças que relacionam aos erros e omissões cometidos pelo governo e pela própria população no caso dos manicômios são apagadas dos discursos em uma tentativa de não responsabilização.
Nesse sentido, podemos compreender a estigmatização dos “anormais” como uma construção social acerca dos limites da normalidade. Portanto, a tentativa de dar voz a esse grupo significa concorrer com a história contada pelos detentores do poder de construção do enredo da lembrança do povo brasileiro. Compreendemos, então, que o esquecer e o lembrar pertence a um processo histórico social em que os “loucos” são colocados como sujeitos sem voz, sem pertencimento, sem história legitima, uma vez que, sua existência representa a vergonha por trás de todo processo modernizador que aconteceu em nome do discurso de progresso.
Em função disso, está a necessidade de suportes de memória para a construção de uma narrativa social mais verossímil com os fatos ocorridos. Com base nisso, tem-se a importância do testemunho pois nenhum relato historiográfico consegue transmitir a intensidade dos acontecimentos experienciados nas instituições psiquiátricas. Dar espaço de fala para as vítimas das tragédias dos manicômios significa, portanto, tentar narrar o inenarrável e demostrar que nos importamos com o que essas pessoas têm a nos dizer, servindo de lembrete para não nos esquecermos de nunca mais cometer essas atrocidades.
COMO CITAR ESSE ARTIGO
MENDONÇA, Dianna Moreira; PEREIRA, Shirley de Oliveira. Estigmatização da Loucura: Uma Questão Justificada Através de Uma Política de Modernização Instaurada na Cidade de Goiânia In:. Revista Me Conta Essa História, a.II, n.14, fev. 2021. ISSN 2675-3340. Disponível em: <https://www.mecontaessahistoria.com.br/post/estigmatiza%C3%A7%C3%A3o-da-loucura. > Acesso em:
REFERÊNCIAS
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FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Editora Respectiva, 1972.
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TORRES, Eduardo Henrique Guimarães; AMARANTE, Paulo. Protagonismo e subjetividade: a construção coletiva no campo da saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva, 6(1): 73-85, 2001. Disponível em: <https://www.scielosp.org/article/csc/2001.v6n1/73-85/> Acesso em: 21 nov. 2020.
ZURITA, Robsmeire Calvo Melo; et. al. Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica no Brasil: reflexões com base no referencial filosófico de Kuhn. Rev. Enfermagem UFPE online. Recife, 7(9): 5604-10, set., 2013. Disponível em: <https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/viewFile/13680/16577> Acesso em: 21 nov. 2020.
[1] Ensaio referente a disciplina de inverno “PATRIMÔNIO CULTURAL DA SAÚDE: DISPUTAS DE MEMÓRIA”, ministrada pelo Professor Doutor Éder Mendes de Paula.
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