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Gabriel Maia de Oliveira

LEGISLAÇÃO IBÉRICA E ESCRAVISMO BRASILEIRO

UMA ANÁLISE HISTÓRICA DA RELAÇÃO ENTRE LEI E RACISMO NA MODERNIDADE

 

LEPH - Revista Me Conta Essa História Fev. 2021 Ano II Nº 014 ISSN - 2675-3340 UFJ.

 

Por Gabriel Maia de Oliveira


[1] Graduando do curso de Direito da Universidade Federal de Jataí e membro do projeto de pesquisa Direitos Humanos, Questão Racial e Capitalismo Dependente.

 

INTRODUÇÃO


Segundo Aníbal Quijano, a ideia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes da América. Esta moldou a estrutura econômica, política e social de forma que a necessidade de desenvolvimento econômico do homem europeu pudesse ser alcançada, necessidade essa, fundamentada em um novo modo de produção, distinto de todos os outros: o modo de produção escravista colonial, tese esta, defendida por Jacob Gorender e Clóvis Moura em suas obras. Dentre as várias ferramentas utilizadas para manter este novo modo de produção em operação, podemos destacar a legitimação religiosa, política, moral e jurídica. Estas esferas legitimadoras refletem inteiramente na formação da legislação que manteve a continuidade deste modo de produção.


Neste sentido, este trabalho pretende apresentar como a lei, tanto portuguesa quanto brasileira, serviu como um fator de legitimação e de impulsionamento do escravismo e, consequentemente, do racismo no país, de forma a analisar os textos legais, para que assim possamos observar com clareza o racismo como um projeto de controle social.


DESENVOLVIMENTO


1. A lei portuguesa e a legitimação do escravismo colonial


Durante o período das grandes navegações, muita coisa mudou. A chegada dos europeus no continente americano trouxe ao mundo uma nova perspectiva, que alinhada ao trabalho intelectual, foi legitimado. O Direito, segundo PACHUKANIS (2017), está associado ao poder estatal a serviço da classe dominante. Este ganhou corporeidade nos princípios básicos do capitalismo ainda em sua fase embrionária, chamada até aqui de mercantilismo, este que interferiu na mudança do aspecto jurídico da Europa dali em diante.


Classes antes sem poderio algum, estavam em ascensão e assumindo novos papéis após a destituição do feudalismo como principal engrenagem econômica do continente europeu. A organização jurídica da Europa, nesse momento, voltou-se a beneficiar os países que almejavam o desenvolvimento econômico acelerado, legitimando várias práticas de domínio, escravidão e opressão social. Segundo QUIJANO (1993), o debate da razão na modernidade levou o europeu a legitimar a criação do conceito de raça e a categorização do ser humano. Hernán Cortés e Francisco Pizarro simbolizaram o homem europeu racional dominando a natureza, esta que não é tida como racional. Legitimados pela categorização dos nativos como seres irracionais por não apresentarem preceitos de preservação da propriedade privada e uma sociedade civil organizada sob a moral cristã burguesa europeia da época. Podemos dizer, que o direito português durante as grandes navegações e no auge do mercantilismo, se inspirava em ordenações de orientação romano-canônica.


Como explicitado por Silva Júnior (2013), a primeira manifestação normativa baseada em ordenações tem como marco as ordenações afonsinas, que trouxe um aspecto nacionalista ao então reino de Portugal. Essa característica tornou Portugal autônoma juridicamente, de forma que a legalidade estivesse envolta do crescimento do comércio e das riquezas nacionais. No entanto, é importante que consideremos o fato de que existe uma particularidade na organização política ibérica que se diferencia de outras, sua tradição legislativa acerca da escravidão particular.


Não houve uma criação específica de um código para o escravismo negro no Brasil, entretanto, a escravidão neste país tem a particularidade de ter sido estabelecida por pessoas que já concentravam experiência legislativa escravista, herdada principalmente do código de Justiniano, que determinou a organização política romana e que mais tarde fora condensada nas Siete Partidas do rei D. Afonso durante o período medieval. Todo o pensamento econômico fora voltado para a sobreposição de pessoas sob outras, essa concepção de igualdade formal é extremamente nova na história, sempre foi claro o domínio social na história ibérica (SILVA JÚNIOR, 2013). Com isso, podemos dizer que o arcabouço normativo durante o período colonial

foi uma renovação de traços característicos, que determinou o futuro do escravismo no âmbito da legalidade dali em diante: o escravo, uma propriedade garantida pela legislação durante muito tempo, agora tem fenótipo determinado, e este é a cor negra. Isto aconteceu pela criação do conceito de raça como categorização e subjugação de povos diferentes dos europeus, era o início de uma era de exploração dos povos de cor e de desenvolvimento econômico da população da Europa, para que pudessem chegar ao chamado progresso civilizatório, foi fundamental a legitimação da raça pelos vieses científicos, filosóficos, religiosos e, inevitavelmente, jurídicos (QUIJANO, 1993).


Pela transição às Ordenações Manuelinas, a legislação portuguesa passou a ter tratamentos diferenciados com relação aos crimes entre escravos e homens livres. O escravo, que antes era tido como minimamente humano pelas Ordenações Afonsinas - sem concepção de raça - era agora tido como um animal de trabalho, legitimado por doutrinas religiosas influentes como alguém sem alma, portanto, sem humanidade (SILVA JÚNIOR, 2013). É possível notar uma diferenciação básica com respeito ao estado de liberdade dos transgressores, isto é, havia castigos distintos para os homens livres e para os escravos que cometessem o crime de soltar servo alheio.


O cativo que cometesse tal crime “sem vontade de seu senhor” deveria receber cem açoites; além disso, teria que passar a servir o dono “do servo que soltou” ao menos até que o prófugo fosse restituído, o que compelia cada um a manter na linha os membros de sua escravaria. O homem livre, agindo diretamente ou ordenando a escravo seu que libertasse o de outrem, ficaria obrigado a pagar dez soldos de indenização ao senhor “do servo pela loucura que fez”, devendo receber cem açoites se não tivesse como satisfazer esse valor. O juiz deveria, ademais, constrangê-lo a devolver o fugitivo ou a pagar outro escravo equivalente (SILVA JÚNIOR, 2013). Esta discrepância da abordagem legal aos escravos era notavelmente uma caracterização da subjugação desumanizadora coordenada pela raça.


Após as revoluções burguesas, a Europa entrou em um processo de profunda mudança política e social. As monarquias absolutistas começaram a dar lugar aos modelos políticos burgueses, e estes, por sua vez, tinham por base o individualismo idealizado pelo iluminismo. Códigos civis, comerciais, administrativos e penais de Portugal, em sua totalidade, legitimavam o direito à propriedade e à liberdade individual, mas, em sua maioria, só reconheciam como detentores de direito os brancos europeus, os chamados sujeitos de direito. Já nas colônias, a escravidão perdurou até mesmo após esta transformação, o liberalismo em ascensão tinha a concepção de que o modo de produção escravista era racional e, portanto legitimado, como evidenciado pelo próprio Locke, que era acionista da Royal African Company, grande organizadora do tráfico de negros. O processo de libertação nas colônias não passou pela abolição como um 'progresso racional' da maneira que os europeus costumavam pregar a revolução liberal, mas como um processo de busca por emancipação da relação de dominação social racializada. Tivemos, segundo Clóvis Moura, resistência e, com isto, o escravo como sujeito de transformações sociais.


2. A formação da legalidade no direito brasileiro e sua relação com o racismo.


Antes dos europeus, a organização dos nativos brasileiros não se dava por leis escritas, mas por tradições e costumes. Com a invasão do homem branco e o início do povoamento da região por volta de 1530, a legislação que começou a vigorar no território colonial foi a portuguesa, a mesma citada anteriormente. Os códigos legislativos portugueses mais abrangentes eram denominados Ordenações do Reino, que eram regulamentos que levavam o nome dos reis que as faziam elaborar ou compilar e que pretendiam dar conta de todos os aspectos legais da vida dos súditos (COSTA, 2011), inclusive nas colônias.


É importante termos consciência de que toda a organização jurídica portuguesa, inclusive no âmbito legal, vai se transformar a partir da colonização, como foi dito antes. A escravidão que já era legitimada, agora ganha uma conotação racial evidente, tudo parte de um projeto de exploração e hierarquização de pessoas segundo a categoria de raça. Segundo LARA (2000), enquanto os principais textos legais referentes aos mouros cativos pertenciam ao livro II (sobre pessoas e bens eclesiásticos) das Ordenações Afonsinas e Manuelinas, aqueles sobre os escravos de origem africana encontram-se especialmente nos livros IV (sobre o direito civil substantivo, direito das pessoas e coisas sob o ponto de vista civil e comercial) e V (que trata do processo penal) das Ordenações Filipinas. Passa-se assim de uma questão submetida ao domínio do religioso, para uma escravidão compreendida como pertencente ao campo do comércio e do controle punitivo.


As autoridades portuguesas neste período tinham o propósito de normalização da escravidão negra, aqueles que opinassem contra esse projeto eram expulsos da colônia ou poderiam sofrer com penalidades mais severas, já que estariam indo contra a ideia de conquista moderna, de direito divino de domínio. Segundo LARA (2000), a escravização dos africanos e seus descendentes, tal como praticada pelos comerciantes portugueses e pelos colonos do Brasil, era um procedimento considerado lícito, válido, legítimo e justo diante das leis divinas, do direito natural e do das gentes.


Mais que apenas na lei, como pudemos observar, a legitimidade era também religiosa e fazia parte de uma ideologia bem estruturada e que se enraizou no aspecto cultural português. Mesmos os castigos eram cristianizados, preocupados com a alma dos senhores, haviam regras de como e quando castigar o escravo, agindo com prudência e se desvinculando da ideia de vingança, a legitimidade espiritual fez parte do cotidiano das torturas sofridas pelos escravos, era tido como uma educação necessária, vinculada à catequização desses, tanto para manter a ordem quanto para transparecer a imagem de bom moço do senhor de engenho que detinha a propriedade escrava. O governo econômico dos senhores, aquele que prevê moderação no castigo e não deixa faltar o sustento e o vestuário, que ordena e divide o trabalho, pretende um equilíbrio entre continuidade da dominação e máxima exploração (LARA, 2000).


Após a independência política em 1822, o Brasil teve sua primeira constituição promulgada em 1824, durante o reinado de D. Pedro I. O período do império brasileiro deixa mais evidente legalmente a categorização que a lei encarava os povos de cor que viviam sob o regime de escravidão no país. No entanto, é durante este período também, que o escravo começa a ter um tratamento diferente do que recebia durante o período colonial: o medo da revolução haitiana transforma a maneira de lidar com o cativo. São exemplos dessas mudanças o olhar humano que o escravo ganha durante o castigo físico, antes o senhor tinha que seguir algumas regras para que pudesse se desvincular da ideia de vingança, mas o referencial deixou de ser somente o senhor, agora também ganha espaço a consideração pelo amaciamento das tensões sociais devido às revoltas e rebeliões de escravos em todo o território brasileiro, um exemplo prático, segundo PAES(2010), as torturas e penas cruéis teriam sido abolidas pela Constituição do Império, restando aos senhores a permissão para castigar seus cativos moderadamente. Caso essa norma não fosse respeitada, o escravo poderia, inclusive, requerer sua venda.


Segundo Alonso (2018), durante o período monárquico, várias foram as tentativas de conter os escravos e suas rebeliões por meio das leis, vários exemplos podem ser aqui citados, como a Lei do Ventre Livre que foi promulgada no ano de 1871, que assegurava, na teoria, a liberdade aos filhos de escravas que nascessem após a vigência desta lei, o interessante desta lei é que ela abria uma brecha muito grande para o senhor , segundo o texto da lei, o filho ficaria sob os cuidados do senhor até os 08 anos de idade, após esta idade, o senhor poderia escolher se exploraria seu trabalho até os 21 ou se exigiria uma indenização, mostrando que os interesses escravocratas ainda permaneciam; a lei dos Sexagenários, promulgada em 1885, que delimitou, em tese, que os escravos que fizessem 65 anos fossem libertos, tinha um problema evidente: os escravos não tinham uma expectativa de vida tão alta e, como forma de indenização, deveriam trabalhar mais três anos para o senhor, ou seja, era mais uma forma de prolongar o escravismo e uma tentativa de amaciar os conflitos e revoltas dos escravos que o país sediava.


No entanto, a luta dos escravos se fortaleceu, obrigando a abolição da escravidão no país. É importante deixar claro que esse feito não foi humanitário, não foi somente por pressão internacional e nacional pela causa abolicionista. Como diz SAMPAIO (2016), as falas dos homens da elite do século XIX, sejam elas alertando sobre a ações dos negros e escravos ou tomando medidas para contê-los deixam entrever o medo, a inquietação e o assombro que estes sentiram durante o período de constantes levantes e conspiração que compuseram o século XIX.


CONCLUSÃO


Mesmo com a Lei Áurea, não houve o fim da estrutura racializada no Brasil, há profundos vestígios de relações escravistas na estrutura da nossa sociedade atual. É imprescindível compreendermos que a partir do momento em que temos a instauração de um modelo cultural escravista como uma necessidade do modo de produção em desenvolvimento na metrópole, o racismo se torna um modo de estruturação social típica da sociedade moderna burguesa, tanto em seu desenvolvimento quanto em seu estabelecimento. Para CASTRO (2018), raça é um construto social, que nada tem a ver com pretensas diferenciações biológicas, mas sim com processo histórico de colonialismo que necessitou de legitimação política e teórica para a classificação de pessoas, culturas e sociedades para escravizá-las e hierarquizá-las conforme as necessidades da burguesia atlântica.


O Brasil, como um país que desempenha um papel de economia dependente no capitalismo mundial teve o escravismo como uma necessidade da manutenção do capitalismo central. Com o fim do modelo escravista, a estruturação racializada se expressa de diversas formas, como com a superexploração do trabalho e com o imperialismo, dois fatores que se alimentam da hierarquização dos seres humanos segundo a categoria de raça, nesse sentido, é importante que observemos o papel do texto legal europeu na legitimação da escravidão negra durante o desenvolvimento do capitalismo: a estruturação do racismo na sociedade é intrínseca e necessária ao modo capitalista de produção. Segundo MOURA (1988), podemos concluir que o modo de produção escravista entrou em decomposição, mas deixou fundos vestígios nas relações de produção da sociedade brasileira. Tais vestígios, tais traços não são, porém, elementos mortos. O modelo de capitalismo dependente que substituiu o modo de produção escravista deles se aproveitou e faz deles uma parte dos seus mecanismos reguladores da economia subdesenvolvida. Desta forma, os vestígios escravistas são remanejados e dinamizados na sociedade de capitalismo dependente em função do imperialismo dominante.

 

COMO CITAR ESSE ARTIGO


OLIVEIRA, Gabriel Maia de. Legislação Ibérica e Escravismo Brasileiro: Uma Análise Histórica da Relação Entre Lei e Racismo na Modernidade. In:. Revista Me Conta Essa História, a.II, n.14, fev. 2021. ISSN 2675-3340. Disponível em: https://www.mecontaessahistoria.com.br/post/legisla%C3%A7%C3%A3o-ib%C3%A9rica-e-escravismo-brasileiro. Acesso em:

 

REFERÊNCIAS


ALONSO, Ângela. Processos políticos da abolição. In.: SCHWARCZ, Lilia Moritz CASTRO, Daniel Vitor. Resistências e expressividades: contribuições da literatura negra para um giro decolonial do direito. Brasília, 2018.


COTA, Luiz Gustavo Santos. O Sagrado Direito da Liberdade: escravidão, liberdade e abolicionismo em Ouro Preto e Mariana (1871 a 1888). Juiz de Fora, 2007.


COSTA, Juvenal Célio. CRUBELATI, Ariele Mazoti. História do Direito Português no período das Ordenações Reais. Congresso Internacional de História, 2011. Disponível em: http://www.cih.uem.br/anais/2011/trabalhos/153.pdf. Acesso em 04/10/2019.


LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.


MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro, São Paulo, Ática.1988.


PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução Paula Vaz de Almeida; revisão técnica Alysson Leandro Mascaro, Pedro Davoglio. – 1. ed. – São Paulo: Boitempo, 2017.


QUIJANO, Aníbal (1993b), “Colonialidad del Poder, Eurocentrismo y América Latina”, in Edgardo Lander (org.), La Colonialidad del Saber: Eurocentrismo y Ciencias Socia‑les. Perspectivas Latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 201-246.


PAES, Mariana Armond Dias. Perdigão Malheiro e a escravidão no Brasil. Revista do CAAP | Belo Horizonte Número Especial: I Jornada de Estudos Jurídicos da UFMG p. 81 a p. 92 | jul. /dez. 2010.


SAMPAIO, Claudineide Rodrigues Lima. O haitianismo no Brasil e o medo de uma onda revolucionária. UNICAP/2016.


SILVA JÚNIOR, Waldomiro Lourenço. História, Direito e Escravidão: a legislação escravista no antigo regime ibero-americano. 1ª edição 2013.

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