Revista Arquivos de Saúde Pública (1951). Sertão. Higiene. Modernidade. Discurso Médico.
LEPH - Revista Me Conta Essa História Mar. 2020 Ano I Nº 003 ISSN - 2675-3340 UFJ.
Por José Antônio Alves Mendes
[1] Acadêmico do curso de licenciatura em História da Universidade Federal de Jataí.
RESUMO
O presente texto busca constituir uma reflexão acerca do primeiro volume da publicação da Secretaria de Saúde do Estado de Goiás, denominada Arquivos de Saúde Pública. Publicada inicialmente em setembro de 1951, tal revista constituía um mecanismo de comunicação entre os médicos goianos da década de 50. Com base nas noções sobre Discurso em Michel Foucault, procuramos na revista as problemáticas sobre Modernidade, Sertão, Higiene e Nacionalidade trazidas por Nísia Trindade Lima e Micael M. Herschmann. As relações de poder presentes nos discursos médicos corroboram a dicotomia entre sertão/litoral, saúde/doença, moderno/atraso e classificam o médico como herói e a sua atividade como patriótica.
INTRODUÇÃO
Na primeira metade do século XX, a classe médica além de seu oficio basilar, era promotora das normatizações/normalizações sócio-políticas e culturais. A saúde sanitária não era vista somente como uma aplicação de investigação científica, mas também como uma ordem cultural que normatizava e normalizava as representações de civilidade e também patriótica-nacionais.
Nessa concepção, Goiás, neste período, encontrava-se no sertão, zona de abandono, incivilidade, insalubridade e consequentemente, suplicante por uma adequação sanitária cujos resultados ajudariam o estado a alcançar sua afirmação nacional, através da higiene. Nesse contexto nasce a publicação da Secretaria de Saúde do Estado de Goiás, Arquivos de Saúde Pública
Este texto busca fazer uma reflexão do primeiro volume dessa revista, publicada em setembro de 1951 na cidade de Goiânia. O primeiro volume possui onze artigos, escritos por diversos médicos e possui os mais variados assuntos. Utilizou-se para análise dos escritos Michel Foucault e o que ele entende do Discurso e para fundamentação teórica as reflexões sobre modernidade, sertão, higiene e nacionalidade em Nísia Trindade Lima e Micael M. Herschmann, dentre outros autores complementa.
DESENVOLVIMENTO
A década de 20 do século XX é marcada pela crise do modelo político, social e cultural vigente, estabelecido em torno de oligarquias regionais e estaduais desde a proclamação da república no Brasil. Tal crise abrirá caminho para a Revolução de 1930. A partir de então começa-se a promover no estado brasileiro, além de uma nova ordem republicana que suplantasse as oligarquias, um novo modelo de Brasil, um ideal de Brasil moderno.
De fato, desde 1870, vemos alguns traços como, a mobilização intelectual, divulgação das ideias positivistas, fortalecimento de partidos republicanos e radicais liberais, que foram capazes de provocar uma efervescência social e política e estabelecer um universo cognitivo modernizante.
(...) moderno, modernidade, modernismo ou mesmo modernização são categorias específicas, que vão ocupando amplo espaço no campo intelectual, constituindo-se em palavras de ordem significativa no começo do século XX, chegando a ganhar um uso quase obrigatório no ambiente intelectual. (HERSCHMANN & PEREIRA, 1994, p. 15).
Desde a última década do século XIX até os anos 30 do século seguinte, adentram no território brasileiro um “conjunto de valores e modelos que a elite dirigente desejava incorporar como referência” (HERSCHMANN & PEREIRA, 1994, p. 26). Tais valores eram baseados em modelos ascéticos e europeus e tinham o intuito de coordenar e normatizar as representações sociais e consequentemente a própria sociedade.
Repensar o moderno era repensar nas bases do saber técnico-científico especializado, ou seja, através da medicina, normalizadora do corpo, da educação, conformadora das mentes e da engenharia, organizando os espaços.
Repensar o moderno relacionava-se com a civilidade [1]. A palavra norteadora era “civilizar-se”, ou seja, equipara-se aos modelos europeus, cujas influências organizaram as reformas sanitárias, pedagógicas e arquitetônicas. A ciência técnica tornou-se baliza para o destino da nação. “A ciência buscava identificar os sintomas de nossa cultura, submetendo-os ao espelho crítico de um outro civilizado, constituindo-se, enfim, em um instrumento do projeto modernizador que garantiria uma almejada sintonia com o progresso” (LIMA & HOCHMAN, 2004, p. 495)
A busca em levar o país à “civilidade” no que diz respeito ao cotidiano, instituições, economia, etc. com o chegar dos anos 30, tentou-se adequar essa modernidade a um quadro institucional possível. A influência de vertentes positivistas buscava expor que o bem público se dá na sociedade moralizada pelo Estado forte, que impõe o discernimento individual em benefício do bem-estar da coletividade.
Para isso, o Estado contou com importantes aliados, os especialistas (cientistas). Impondo-se de maneira autoritária, o Estado desfechou diversas “estratégias pedagógicas” que tinham como objetivo a orientação da conduta dos indivíduos (HERSCHMANN, 1994, p. 44).
Um dos aliados do Estado foi a classe médica; ambos se articularam para a dominação e promoção de um controle social. A medicina, a partir da influência positivista de Comte, se concebia como responsável pela orientação e organização da sociedade. Artigos e teses médicas passam a ter como tema, corpo, sexo, vida íntima conjugal e higiene individual, demonstrando a vida privada como novo foco. E segundo Herschmann, o objetivo desses médicos higienistas e sanitaristas era normatizar e conseguir que os indivíduos desempenhassem seus papéis de produtores econômicos e reprodutores de proles e raças sadias e puras. Portanto, era preciso disciplinar a sociedade, incutir valores e “destruir os vícios presentes” nos centros urbanos, construindo uma comunidade higiênica e civilizada pela secularização dos costumes (HERSCHMANN, 1994, p. 44).
Os médicos, partindo do pressuposto realista, puderam embasar seus discursos ideológicos. Ao intuir que o real se faz por si mesmo, eles construíram as suas representações da própria realidade. Os intelectuais médicos da época pretendiam ser o elo que permitiria a junção entre o povo e a nação, responsáveis por conduzir a nação ao encontro de si mesma. Trouxeram para si a condução do processo civilizatório e consequentemente formar a ideia de nacionalidade. Adequando-se ao linguajar da época, formar a pátria.
Sanear, higienizar e educar, para eles, são as chaves que abririam as portas da civilidade e consequentemente solucionar os problemas nacionais. “O movimento pelo saneamento teve um papel central e prolongado na reconstrução da identidade nacional a partir da identificação da doença como elemento distintivo da condição de ser brasileiro” (LIMA & HOCHMAN, 2004, p. 495).
E para os autores supracitados, essa discussão se dá em torno de uma esfera dualista habitada por pares indissociáveis, tais como litoral-sertão, saúde-doença e moderno-atrasado. É nesse contexto de sertão, higiene e modernidade como civilidade que foram elaborados os artigos da Arquivos de Saúde Pública [2].
Nísia Trindade Lima, em Um Sertão Chamado Brasil, traz várias definições para palavra sertão; Sertão enquadra-se em definições como área espacial, lugar no interior. Região agreste, distante das povoações. Interior pouco povoado. Essas representações ganharam forma a partir do processo colonizador da América, em que se demonstrou a dicotomia Europa e América e posteriormente, a dicotomia Litoral e Sertão (LIMA, 1998, p. 57).
A partir de uma colonização voltada para o mar, a região litorânea tornou-se a região colonial, o espaço do colonizador, constituída pela ordem e pela presença do Estado e da Igreja. Sua antítese seria a região do vazio e do desconhecido, não preenchido pela colonização. É exatamente a ideia de distância em relação ao poder público que se pode conceber os vários atributos à palavra sertão.
Sertão, nessa perspectiva, é concebido como um dos pólos do dualismo que contrapõe o atraso ao moderno, e é analisado com frequência como o espaço pela natureza e da barbárie. No outro polo, litoral não significa simplesmente a faixa de terra junto ao mar, mas principalmente o espaço da civilização. (LIMA, 1998, p. 60).
O dualismo entre sertão e litoral caracteriza o sertão como o polo negativo, resistência ao moderno e a civilização, e o litoral como sua ambivalência. A valorização desse polo negativo pode ser delineada por alguns eixos como raça/natureza: “o litoral – reduto da civilização e dos grupos brancos e o sertão – dominado por uma população, mestiça, infantil, inculta em estágio inferior da evolução social.” (NINA RODRIGUES apud LIMA, 1998, p. 60).
Ou pelo patrimonialismo:
A herança do conquistador – o coronel e o capanga, o fazendeiro, o sertanejo, o latifundiário e o matuto, o estancieiro e o peão –permanecerá estável, conservadora, na vida brasileira, não raro atrasado e retardando a onda modernizadora, mais modernizadora do que civilizadora, projetada no litoral. (FAORO, 1997 apud LIMA, 1998, 61).
Com a república, veio à tona um expressivo movimento de incorporação do país à chamada civilidade europeia, esforço esse assumido pelas elites políticas. Várias expedições ao interior foram realizadas associadas a projetos modernizadores e científicos, nos âmbitos da engenharia e arquitetura, e das políticas de saúde pública e educacionais. Dentre os expedidores podemos citar, Rondon Cândido, Lois Cruls e as expedições do Instituto Osvaldo Cruz.
Esses desbravamentos podem ser vistos com forte teor simbólico, acompanhados de projetos de delimitação de fronteiras, de sanitarismo, povoamento e integração. Esses movimentos, associados fortemente à expansão do Estado, tiveram como agentes, indivíduos formados pelos cientificismos mais variados. Essa formação foi capaz de constituí-los como portadores de uma “cultura heroica”, capaz de construir a nação.
As viagens realizadas durante o início da república ajudaram a formar um retrato das áreas do sertão em que as doenças são identificadas como um problema básico da nacionalidade, o que proporcionou grande impulso aos movimentos sanitários.
As variadas doenças identificadas como endêmicas, dentre elas, malária, doença de Chagas, esquistossomose, helmintíases em geral, além das doenças venéreas, ajudaram a dar visibilidade aos sertões brasileiros, abandonado e isolado do resto do país. A perspectiva médica de olhar para os sertões brasileiros transformou-se em questão cultural, servindo de base para a elaborar uma interpretação da sociedade (LIMA, 1998).
A concepção de normatizar a vida social a partir de regras higiênicas tem origem na França e proporcionou a criação de um “Estado higienista”. Os cientistas que estudavam saúde pública participavam fortemente do debate sobre a regeneração do homem e do aprimoramento da moral. Os higienistas tornaram-se intérpretes do sentido ao pretender regenerar a sociedade.
As bases epistemológicas da higiene que deram origem às teorias de transmissão de doenças levaram a formulação de práticas como isolamento de doentes, desinfecção de objetos, formulação de quarentenas, intervenção de ambientes insalubres como águas paradas, habitações populares, concentração de lixo e esgoto, além de reformas urbanas. Também observamos nas ações higienistas que
Algumas perspectivas enfatizam por outro lado as formas de controle sobre o comportamento social, as condições de trabalho, de habitação e alimentação das populações urbanas, indicando o processo normalmente entendido como de medicalização da sociedade. Associado a pressupostos liberais e de defesa de reforma social, ou identificados a posições de cunho autoritário, à semelhança dos contagionistas, os infeccionistas [3] lideraram importantes projetos e propostas de reforma sanitária. (LIMA, 1998, p. 95).
No Brasil, vários fatores fizeram com que os médicos voltassem seu olhar para o âmbito social no início da república. As críticas dirigidas às elites políticas brasileiras em Os Sertões de Euclides da Cunha; as expedições do Instituto Oswaldo Cruz e de Rondon, e discursos como de Miguel Pereira, assinalavam a presença de um sertão de endemias e abandonado, “considerado um imenso hospital”. Os artigos publicados por Monteiro Lobato em O Estado de São Paulo pretendiam retratar o que é o sertanejo brasileiro: piolho da terra, parasita, quantidade negativa e obstáculo para o progresso nacional. (LIMA, 1998; LIMA & HOCHMAN, 2004).
A campanha pelo saneamento do sertão alcançou repercussão nacional com a publicação de uma série de artigos no jornal Correio da Manhã, em 1917 e rendeu o livro Saneamento do Brasil de 1918. Tratava-se, segundo os médicos da época, de uma cruzada da medicina pela pátria.
Ao médico cabia substituir a autoridade governamental, ausente na maior parte do território nacional. Nessa cruzada, fazia-se sentir a crítica à oligarquização da República, especialmente ao princípio da autonomia estadual e municipal que impedia uma ação coordenada, em nível federal, capaz de promover o combate às epidemias e endemias e melhorar as condições de saúde da população. (LIMA, 1998, p. 106).
A campanha apresentava-se como um movimento de caráter amplo, baseado em um nacionalismo e na pretensão de livrar a pátria dos males das doenças e uma de suas conquistas foi a criação do Departamento Nacional de Saúde, dirigido por Carlos Chagas. A campanha foi capaz de transformar em problema social o que antes só estava nos debates de periódicos médicos: a questão das endemias e o abandono público como marcas constitutivas das zonas rurais brasileira.
Durante boa parte de sua história, Goiás esteve na classificação de sertão e segundo Vieira (2012) a região goiana era bem mais reconhecida por seus traços negativos, como: o atraso, o isolamento, o abandono, a estagnação, a pobreza e a doença, do que por seus traços positivos, como a originalidade da cultura sertaneja. Todos esses traços negativos são descritos na historiografia goiana até mesmo no século XX e ajudaram a perpetuar essa imagem goiana negativa.
A transferência da capital federal para Goiás é um exemplo do esforço e da mobilização na integração do estado ao resto da nação, tendo essa transferência vários protagonistas. “Entre os personagens que contribuíram de forma mais ativa para que isso acontecesse, tendo em vista principalmente a péssima imagem sanitária que se tinha do Brasil Central, figuraram os médicos de Goiás” (VIEIRA, 2012, p. 28). Os médicos, enquanto elite local, mesmo que acostumados ao contexto econômico do interior do Brasil, teriam percebido a realidade local como decadente. Dessa imagem decadente nasce o esforço de superação, elemento básico na construção da imagem local.
Os médicos em Goiás, desde 1947, sempre participaram dos Congressos de Medicina do Triangulo Mineiro em Uberaba e região e, por influência deste, buscavam se organizar e divulgar a suas atuações no estado de Goiás. No congresso de 1950, a delegação goiana contou com cinco membros, dentre eles Peixoto da Silveira, futuro Secretário Estadual da Saúde. Esta edição do congresso foi fundamental porque foi nela que se decidiu pela cidade de Goiânia como sede do congresso no ano seguinte. Uma vez aprovada a proposta, os médicos goianos assumiram o compromisso de criar uma entidade que reunisse os médicos do estado, a Associação Médica de Goiás (VIEIRA, 2012).
Nesse contexto nasce a revista Arquivos de Saúde Pública, um periódico editado pela Secretaria de Saúde do Estado e que tinha como diretor e editor o próprio secretário de saúde, José Peixoto da Silveira. Sua primeira publicação foi de setembro de 1951 e em sua apresentação o editor escreve os motivos da criação desse periódico.
Como publicação da Secretaria de Estado da Saúde – e destinados a divulgar as atividades dos diversos serviços desta Secretaria, e, principalmente, estabelecer melhor intercambio cultural entre os vários departamentos em que ela se desdobra, – surgem, hoje, à luz da publicidade, os Arquivos de Saúde Pública. O acontecimento é digno de nota e merece um registro todo especial, quer por ser o primeiro órgão de publicidade médico-científico, em Goiás, quer pelos autos objetivos de servir, simultaneamente, de veículo de expressão e traço de união entre todos aqueles que estão contribuindo para o trato dos angustiosos problemas que a medicina social traz sob equação. (ARQUIVOS DE SAÚDE PÚBLICA, 1951, p. 5).
Como podemos observar nessa apresentação, os autores dos artigos da revista eram médicos e o público para quem se escreviam os artigos também era médico. A linguagem rebuscada, com períodos, muitas vezes, prolixos, revela-nos que a revista não era destinada a qualquer interlocutor. Poucos teriam compreensão do conteúdo.
A revista Arquivos de Saúde Pública é um discurso que corresponde a uma narrativa construída pela classe médica regional e pretende-se sustentar como verdadeiro não só no que tange à pratica da profissão médica, mas também articular-se como um juiz e executor do quadro cultural, social e econômico de Goiás. Para fazer presente análise, trazemos a perspectiva do filósofo francês Michel Foucault.
Para Foucault, os discursos não são apenas um conjunto de signos e significantes que se referem a determinado conteúdo. As sínteses discursivas são aceitas como naturais no mundo social, entretanto é justamente essa aceitação natural que é colocada em xeque; os discursos tornam-se o objeto da análise.
Colocando-os em suspensão, podemos perceber que são construídos para aparecer de determinada forma em determinado momento. Analisar o discurso é perceber que por traz de “verdades naturalmente aceitas”, há algo de oculto, dissimulado e intencional. Nos discursos, pode-se perceber relações históricas materializadas em práticas discursivas (FERREIRA & TRAVERSINI, 2013; FISHER 2001).
Leitor de Friedrich Wilhelm Nietzsche, cujos escritos buscavam mostrar que a concepção de verdades consideradas naturais à razão, ou verdades em si, foram na realidade criadas historicamente por um sistema de valores transcendentais presentes na cultura ocidental. Cada grupo no decorrer da história definiu e escolheu os valores a serem seguidos para dar sentido à existência. E escolher um significa automaticamente excluir outros. Foucault ao referir-se aos discursos, afirmará que os mesmos não possuem verdades em si, muito menos são considerados naturais à razão; por outro lado são construídos historicamente e controlados.
O discurso para Foucault é
um conjunto de regras anônimas, históricas sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram em uma época, e para uma área social, econômica, geográfica, ou linguística dada as condições de exercício da função enunciativa (FOUCAULT apud SILVA & JÚNIOR, 2016, p. 201).
Apresentando ainda as várias concepções acerca do discurso, Foucault afirma que ele é:
Um bem – finito, limitado, desejável, útil – que tem suas regras de aparecimento e também sua condições de apropriação e de utilização: um bem que coloca, por conseguinte, desde sua existência (e não simplesmente em suas “aplicações práticas”), a questão do poder; um bem que é, por natureza, o objeto de uma luta política (FOUCAULT apud FERREIRA & TRAVERSINI, 2013, p. 209).
Ao se analisar qualquer fórmula discursiva não se pode observar somente o discurso em si, mas deve-se observar aqueles que formularam tal discurso, pois os sujeitos formuladores não o fazem simplesmente, pois estão atrelados ao polo da produção discursiva. Todo discurso possui seu núcleo de produção, não é algo feito aleatoriamente. Ele obedece aos interesses de instâncias como órgãos e instituições e das relações de poder que o produz.
Com sua produção estritamente controlada, selecionada, organizada para que se camufle seus poderes, as práticas discursivas são definidas pela posição do sujeito que fala, dos lugares de onde se fala e das posições sociais que se assume quando ele é pronunciado. O conjunto de enunciados está interligado ao poder, e interligado nas relações entre os sujeitos.
Para Foucault, o poder não é um objeto natural, uma coisa, não existe em si, o que existe são relações de poder que atravessam todas as nuances sociais; é uma prática social, um conjunto de forças constituído historicamente. Os sujeitos e os objetos não são preexistentes ao discurso, mas são fundados pelos discursos formados a partir das relações de poder. Não existem sociedades livres das relações de poder, os indivíduos são resultados imediatos dessas relações. (SILVA; JÚNIOR, 2016; DANNER, 2009).
Foucault também salienta que a noção de poder sempre está associada à vontade que em um determinado grupo possui em determinada área. Reter as verdades sobre determinado saber é ser possuidor de poder, com isso controlador dos discursos sobre determinado assunto. Porém
Apesar das instâncias detentoras de discursos como o Estado, a medicina, o direto, a educação, etc., reivindicarem o controle discursivo em seus respectivos domínios, tanto seus enunciados como seus discursos serão confrontados com outros, produzidos por outras instâncias não legítimas “oficialmente (SILVA & JÚNIOR, 2016, p. 205).
Desta forma pode-se dizer que o poder é multipolar e dinâmico, não existe em si e muito menos não há um lugar oficial de seu nascimento. A formação dos sujeitos se dá através da identificação e oposição aos poderes maiores da sociedade, expressos em discursos, que por sua vez buscam dominar os indivíduos e fazê-los portadores de posturas desejáveis.
Assim, os discursos são proposições que adquiriram caráter de verdade e começam a formular padrões de comportamento, num meio social historicamente produzido.
O primeiro volume da Revista Arquivos de Saúde Pública, laçado em setembro de 1951, possui onze artigos ao todo, nos assuntos mais variados possíveis e escrito por diferentes médicos. Radioatividade das águas de Caldas Novas – Goiás, Doença de Chagas, Febre Tifoide, “Higiene Pré-natal”, Serviço Nacional de Malária, Vacinas, publicação de leis em relação à saúde em Goiás, ofícios do Secretário da Saúde de Goiás, publicações de jornais, dentre outros.
Buscou-se, ao analisar esses mais variados artigos médicos, encontrar tais relações de poder e formação de sujeitos, através de discursos dominantes que disciplinassem a sociedade, incutissem valores e “destruíssem os vícios” presentes, e assim construir uma comunidade higiênica e civilizada. Ao perscrutar as publicações sobre doenças, diagnósticos, ciclos biológicos, tratamentos, profilaxias, leis, cartas, procurou-se palavras e expressões que revelassem tais relações.
Na apresentação, contida nas primeiras páginas da revista, José Peixoto da Silveira nos apresenta algumas características goianas contrastando com missão médica.
Se não se produz muito, em Goiás, publica-se menos ainda. (...) Verdade é que nos faltam, por enquanto, as condições econômicas que propiciam os meios naturais e espirituais para a eclosão de atividades puramente científicas (...) sua maior aspiração [da revista] é servir de modesto estímulo a todos que, na Capital e no interior do Estado, vêm dedicando, mais pelos imperativos da consciência profissional do que pelas parcas remunerações. (ARQUIVOS DE SAÚDE PÚBLICA, 1951, p. 5)
Peixoto da Silveira, assim como vários outros memorialistas e historiadores da época, salienta a precariedade goiana, consolidando uma visão de um lugar atrasado, não civilizado, sem recursos e sem desenvolvimento científico. A campanha pela modernização do interior estruturada por medidas higiênicas atingiu também a classe política goiana.
A lei n. 574 de 1951 decretada pela Assembleia legislativa de Goiás é publicada na própria revista. Nela consta-se a criação do Serviço Itinerante de Saúde, serviço que prestava assistência médico sanitária à população do interior do Estado, além de ministrar ao povo rudimentos de educação em saúde e realizar censos relacionados ao sanitarismo.
Os acontecimentos discursivos, dentre eles as leis, são acontecimentos históricos como já dito anteriormente, e fornecem o poder de narrar sobre o outro; fica evidente que tais discursos formulam sujeitos, mais especificamente formulam o ruralista do interior Goiano como aquele necessitado de educação. A educação está intrinsicamente relacionada, na década de 50, com higiene e consequentemente civilidade. O rural brasileiro era considerado mal-educado e bárbaro.
Em conjunto às características negativas de sertão de Goiás, coadunava a sublime missão médica. A figura do médico seguirá sempre exaltada em toda a revista; a imagem médica foi bastante idolatrada e convertida em herói, uma vez que as doenças são personificadas na figura do mal. O médico-herói está diante de uma missão em Goiás.
No artigo Doença de Chagas em Goiás, de Clovis Figueiredo, Cardiologista de Goiânia, observamos a seguinte expressão: “Brevemente serão iniciados o combate ao babeiro e o estudo de sua frequência e distribuição no Estado, medidas de grande valor econômico para Goiás pois impedirão, em parte, pelo menos, a marcha destruidora do mal.” (ARQUIVOS DE SAÚDE PÚBLICA, 1951, p. 16)
Esse mal encontra-se no sertão, e não no litoral. A dicotomia litoral-sertão, saúde-doença aqui está presente e ratificada no discurso médico. Nesse grande Faroeste está a figura do médico. Nos artigos os nomes são citados várias vezes, por completo, com adjetivações, e sempre em contraste com algo trágico, perverso e incômodo, como exemplifico no artigo Outras atividades do Serviço Nacional de Malária:
Devo citar também o nome do Dr. Rubem Jácomo (...), tornou-se um verdadeiro pesquisador, a ponto de criar, no Brasil Central, uma autêntica mentalidade chagásica, lutando contra todos aqueles que se obstinavam em não reconhecer a suma gravidade desse problema(ARQUIVOS DE SAÚDE PÚBLICA, 1951, p. 21).
A representação de uma missão alcançada pelo médico pode ser compreendida nas insinuações feitas por Peixoto da Silveira de que “sua maior aspiração [da revista] é servir de modesto estímulo a todos que, na Capital e no interior do Estado, vêm dedicando, mais pelos imperativos da consciência profissional do que pelas parcas remunerações” (ARQUIVOS DE SAÚDE PÚBLICA, 1951, p. 5). A atividade médica estaria além das baixas remunerações e se enquadraria nos imperativos da consciência profissional. Tal consciência profissional ordena o médico a encarar seu trabalho como missão de combate ao mal, personificado nas doenças e nos corpos de quem elas se manifestam.
Chama nossa atenção o artigo denominado Higiene Prénatal e infantil nas zonas rurais, de Rainer de Paula, médico sanitarista da Secretaria de Saúde de Goiás. Nele lemos:
A nossa pátria possue vasta extensão territorial, difíceis vias de comunicação e uma população com alta proporção de analfabetos, por isso podemos imaginar como será difícil a educação sanitária do povo. A grandeza de uma nação é proporcional ao estado de higidez de seus filhos (...) Males como a sífilis, tuberculose, lepra, etc., capazes de provocar a degeneração da raça serão despistados a tempo, e, tomadas as precauções, instituídos tratamentos médicos, grandes desastres serão evitados. A sífilis, (...) [é responsável] por grande número de abôrtos, partos prematuros, nati-mortos, monstruosidades, etc., não deixando de mencionar ainda os cégos, surdo-mudos, débeis mentais que constituem pêso morto para a sociedade, a encherem asilos e manicômios (...) em pleno sertão brasileiro, principalmente nas regiões agrícolas onde há maior densidade de população é grande o número de mulheres gestantes e crianças em completo desamparo sanitário, entregues às experiências das “comadres” ou às audácias dos “curandeiros”, é por isso que continuam elevadíssimos os coeficientes de nati-mortalidade (ARQUIVOS DE SAÚDE PÚBLICA, 1951, p. 17).
Para analisar esse recorte iremos recorrer a Foucault, em seu livro Microfísica do Poder, no qual o filósofo descreve o nascimento da medicina social. Segundo Foucault “O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo.” (FOUCAULT, 1996, p. 46). E tal controle se dá através da Medicina.
De acordo com o filósofo, a medicina social passou por três séries. A primeira, denominada medicina de Estado, surgida especificamente nos países germânicos, caracterizou-se por um saber médico estatal, normalização da profissão médica e sua subordinação à uma administração e a integração de vários médicos em uma organização, também estatal, a fim de que se pudesse ter controle sobre os corpos; não como força de trabalho, mas enquanto próprio corpo constituinte do Estado e propício para os conflitos militares. Essa força estatal, enquanto corpo, deve ser aperfeiçoada e desenvolvida. Dessa medicina temos algumas bases para as teorias eugênicas.
A segunda série da medicina social denomina-se urbana e é originária na França. Suas características são a “limpeza urbana”, levando para fora da cidade tudo o que pode causar doenças, como cemitérios, matadouros, lixo; além de desobstruir o que se pode estagnar o ar, derrubando-se até mesmo bairros a fim de que possam abrir grandes avenidas. Nessa série da medicina nascem conceitos de salubridade e higiene pública [4].
A última série é denominada medicina do operário. Característica da Inglaterra, dentro de um contexto de revolução industrial; o poder médico atinge o corpo como força de trabalho. É essencialmente um controle da saúde e do corpo das classes mais pobres para torná-las mais aptas ao trabalho, através de um assistencialismo. Também a coabitação de ricos e pobres em um mesmo ambiente é considerado perigo sanitário e político, ocasionando a organização de bairros pobres e ricos. Através dessas três series médicas, Foucault irá dizer que o corpo é uma realidade bio-política e que a medicina é uma estratégia bio-política.
Essas influências médicas também chegaram ao Brasil, via correntes cientificistas, via capitalismo. No trecho destacado acima de Higiene Prénatal e infantil nas zonas rurais é possível observar tais influências. O papel do médico é impedir a chegada do mal – doença, capaz de degenerar a raça.
A medicina de Estado, no intuito do melhoramento do corpo, e aplicada à coletividade, preteria o melhoramento da raça. A corpo precisa ser padronizado, e com isso normatizado. No artigo de Rainer de Paula os “processos educacionais” higiênicos precisam ser alcançados desde o útero materno, pois segundo o autor a criança é o berço da nacionalidade.
Aqui o conceito de nacionalidade se entrelaça aos conceitos de higiene e estado de saúde, uma vez que “a grandeza da nação é proporcional a higidez de seus filhos” (ARQUIVOS DE SAÚDE PÚBLICA, 1951, p. 17). O autor equipara o estado de saúde dos cidadãos `a imponência da nacionalidade. Enquanto um nação possuir “filhos doentes”, ela será pequena. Filhos doentes não são viáveis economicamente para sociedade, e acabam se tornando pesos-mortos.
Os sujeitos, na teoria foucaultiana, são um efeito das relações dos discursos construídos nas relações de poder. Ele se torna um enunciado social, localizado no emaranhado dessas relações. O discurso médico da medicina do operário também foi capaz de criar sujeitos considerados pesos-mortos.
Todos os que não são capazes de produzir para a nação, dentro de um sistema capitalista, torna-se o sujeito peso-morto. Cegos, surdos-mudos, débeis mentais eram considerados pesos para a sociedade e pelas relações de poder precisavam ser excluídos do convívio social. Os seus despejos em manicômios constituem a materialidade excludente desse discurso.
As malformações congênitas são consideradas pelo autor como monstruosidades, ou seja, algo que se apresenta contrário ao natural e demostra uma tentativa no discurso da intervenção médica pelo melhoramento da raça. A população brasileira precisa estar livre de monstros, e o que não pode ser considerado natural e normal, cai no âmbito do vergonhoso, improdutivo e inútil. A normalidade e a grandiosidade da nação correspondem ao glorioso, forte, produtor e útil. A normalidade é alcançada pela educação higiênica. A medicina se torna uma estratégia bio-política.
Na teoria de Foucault, o discurso não é somente lugar de expressão de um saber, mas o exercício do poder através do saber. Em todo discurso há uma “vontade de verdade” que traz em si a chancela de classificar algo como verdadeiro e consequentemente algo como falso. A oposição entre verdadeiro e falso é um sistema de exclusão que se manifesta historicamente. A vontade de verdade como sistema de exclusão vai se apresentando de forma diferente em cada época e exerce pressão e coerção sobre os outros discursos. O verdadeiro estabelece-se então como polícia discursiva. Ao se analisar tal vontade de verdade, pode-se perceber por quais desejos e poderes se lutam e se querem apoderar (VANDRESEN, 2008).
O médico sanitarista Rainer de Paula diz que o sertão brasileiro está entregue ao desamparado higiênico e desastrosamente entregue à “comadres” e “curandeiros”. Aqui o autor faz referência de forma pejorativa à medicina popular, presente até hoje no interior do país, nos locais onde a medicina formal não é capaz de alcançar.
A medicina popular não possui o conjunto de forças suficientes frente aos discursos capitalistas e de cientificidade. Nos conceitos comadres e curandeiros, ela sofre coerção, afim de que possa ser excluída, uma vez que é classificada como falsa pela vontade de verdade do discurso médico. O discurso médico, possuidor de uma vontade de verdade, torna-se a polícia discursiva e dita as regras do jogo dos discursos e com isso é capaz de traçar as relações entre desamparo, altas taxas de mortalidade com comadres e curandeiros.
Em outro artigo da revista, consta uma carta de Peixoto da Silveira ao Diretor do Serviço Nacional de Tuberculose. Ao justiçar a importância da construção de um sanatório em Goiânia ao diretor, ele diz:
Poucos puderam ser atendidos [doentes do interior], por falta de vagas, e muitos regressaram ou ficaram em pensões nesta capital, constituindo uma ameaça seríssima. Parodiando Cesar de Araújo, podemos dizer que a “tuberculose em Goiás é mais do que um problema, mais ainda do que ua’ mazela que envergonha e humilha, porque assume o feito de verdadeira calamidade”. (...) outra maneira de sanar a situação triste, deplorável de remediar êste grande flagelo médico social, senão adaptando, como medida de emergência, um prédio onde serão isolados e tratados os indigentes pelo menos. (ARQUIVOS DE SAÚDE PÚBLICA, 1951, p. 33).
Mais uma vez a figura do doente e da doença vinculam-se à personificação do mal, da vergonha e da humilhação. Uma nação que não consegue dar cabo de seus doentes é uma nação humilhada. A presença do doente, principalmente do doente indigente, é uma séria ameaça, por isso precisa ser excluída do convívio social, através da internação. Apresenta-se nesse trecho algumas influencias da medicina urbana francesa, em que os espaços urbanos precisam purificados. Foucault diz:
O poder político da medicina consiste em distribuir os indivíduos uns ao lado dos outros, isolá-los, individualiza-los, vigia-los um a um, constatar o estado de cada um, ver se está vivo ou morto e fixar assim a sociedade em um espaço esquadrinhado, dividido, inspecionado, percorrido por um olhar permanente e controlado por um registro, tanto quanto possível completo, de todos os fenômenos. (FOUCAULT, 1996, p. 51).
Em outra carta endereçada ao Comandante Geral da Polícia Militar de Goiás, Peixoto da Silveira afirma que “O conceito de salubridade vai se confundindo cada vez mais com o estágio de civilização” (ARQUIVOS DE SAÚDE PÚBLICA, 1951, p. 34). Tal afirmação se dá em um contexto de acréscimo do salário do militar, enquanto o mesmo serve em zonas insalubres, segundo o artigo 169 da Constituição do Estado. Higiene, segundo Peixoto, é uma “contínua luta para resolver o problema da ambientação do homem” (ARQUIVOS DE SAÚDE PÚBLICA, 1951, p. 34) e tal luta se configura na busca pela civilidade do estado Goiano. Higienizar é a porta para incorporar o estado a um quadro civilizatório, e a condução desse processo se passa pelas mãos médicas.
Podemos demostrar tais medidas com as exigências tomadas pela secretaria da saúde do estado em relação a bares e restaurantes da capital. Essas exigências também foram publicadas na revista e “visam tão somente assegurar a saúde de todos” (ARQUIVOS DE SAÚDE PÚBLICA, 1951, p. 36) e a denominação utilizada para qualificar os fiscais dessas medidas é Polícia Sanitária, propiciando ao discurso autoridade militar e coercitiva. Tal discurso é capaz de gerar sujeitos com autoridade militar e coercitiva.
Dentre as várias exigências sanitárias, algumas se destacam por seus meros valores estéticos como: “inutilizar xícaras, pires, pratos, copos e quaisquer vasilhames que apresentarem mau aspecto, rachaduras ou pequenos quebrados e outros defeitos” (ARQUIVOS DE SAÚDE PÚBLICA, 1951, p. 36).
O último artigo da revista é uma chamada para um jornal, cujo teor é a importância da Capital em realizar o III Congresso Médico do Brasil Central, e destacam-se as seguintes palavras de Peixoto da Silveira:
Além desta singularidade, digna de nota também é o sadio nacionalismo que inspirou a escolha do local. Nimbados pelo estudo e pela experiência, pela sabedoria e pelo patriotismo, em Goiânia se reunirão os nossos maiores luminares da prática e da ciência médica (...) Tudo isso tendo por cenário inspirador e normativo a própria ambiência física e social do Brasil Central, onde se reedita, hoje, uma nova epopéia bandeirante. (...) Goiás orgulha-se e Goiânia, se desvanece de ser a sede do egrégio certame, quer pelo valor moral e intelectual dos congressistas, quer pelos elevados objetivos que se inspiram na mesma preocupação, vivem no mesmo anseio e comungam o mesmo ideal que é a recuperação sanitária do sertanejo, como base para o aproveitamento do potencial econômico da nossa terra.(ARQUIVOS DE SAÚDE PÚBLICA, 1951, p. 48).
Esse trecho de Peixoto está repleto de significados e simbolismos que vão muito além do mero discurso. Aqui vemos se entrelaçar os conceitos de nosso estudo em questão: Modernidade, Nacionalidade, Higiene e Patriotismo. Goiás almejava sair de sua condição enquanto sertão e anexar-se ao resto do país. A medicina foi uma das áreas a auxiliar o país na busca pelo moderno e a legitimação desse discurso se materializa na própria transferência da Capital Goiânia. “O que há, de fato, é a elaboração de um planejamento de modernização que culminará na construção de uma nova cidade projetada para ser símbolo de um progresso que até então o estado era acusado de não possuir” (PAULA, 2011, p. 38).
Ao argumentar que a antiga capital era insalubre, e isso também era afirmado por vários escritores, Goiânia nasce não só como o moderno e o novo em meio ao sertão, mas também como o saudável e limpo. Seria a grande marcha pela cura através da dominação do sertão. Um local passa a ser moderno, ordenado, organizado e limpo dentro de Goiás, demonstrando a influência medicina social francesa. Tal “metamorfose” dentro do sertão compara-se a uma epopeia bandeirante. Os médicos se autoproclamavam desbravadores e senhores desse sertão. As medidas higiênicas foram os facões a modificar a erva daninha cultural de raça goiana.
Tal erva daninha encontrava-se no cerne da nacionalidade brasileira. Nacionalidade essa enquanto um estado forte e soberano. Para que se tenha a representação de um estado forte se faz necessário que seus indivíduos também o sejam, na perspectiva da medicina de Estado. A miscigenação no brasil, segundo os intelectuais do século XIX gerou um indivíduo inútil, fraco e preguiçoso; a própria figura do Jeca Tatu tornou-se a representação do homem sertanejo.
Essa figura encontrava-se num verdadeiro paradoxo. Pois ao mesmo tempo que ela é fraca, ela é a representação da originalidade brasileira. Na busca de uma figura que representasse o país e que não fosse uma mera cópia europeia, tem-se a figura do sertanejo. Dessa forma, esse sertanejo necessitava ser melhorado a ponto de se tornar útil à nação. Tal melhoramento se passava via comportamento, através de normas higiênicas e imposições culturais.
A medicina irá ditar, através do sanitarismo, a cultura. Trazendo novamente a fala de Rainer de Paula no artigo Higiene Prénatal e infantil nas zonas rurais “A grandeza de uma nação é proporcional ao estado de higidez de seus filhos”, vemos que a higiene tornou-se a salvação da nação e por isso tornou-se políticas públicas muito bem estudadas e implementadas.
A classe médica vivia o anseio de recuperar o sertanejo, para fazê-lo viável economicamente dentro dos modelos capitalistas da época. O sertanejo, que é figura nacional e necessitado de melhoramento, passará pelo agente dessa promoção. O médico, que proporciona tal transformação, converte-se em uma figura indispensável. Dessa forma ele é extremamente exaltado e o seu trabalho já não é somente mais um trabalho profissional, é também um trabalho patriótico (PAULA, 2011).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os recortes trazidos dos artigos médicos da revista demostram a existência do Saber-Poder, teoria formulada do Foucault. Os detentores do Discurso são os detentores da “Verdade”. Entretanto tal verdade é constituída historicamente nas relações de poder entre os sujeitos e objetos. Os discursos médicos trazidos possuem uma vontade de verdade e está acima de qualquer outro discurso. Tais discursos tentaram, pela higiene, normatizar o quadro cultural do estado de Goiás, considerado sertão, pobre e atrasado.
Os textos médicos revelam a pretensão de exclusão de todos os que não eram considerados úteis. Goiânia estava solicitando ao governo federal recursos para a construção de sanatórios e manicômios. Também revelam a pretensão de modificar a figura sertaneja, considerada “imprópria e improdutiva”, dentro do sistema capitalista da época. O ruralista goiano, em sua grande maioria, analfabeto, precisava de uma educação sanitária, e tal educação revela em alguns aspectos a destruição da cultura sertaneja.
As relações de poder presentes nos discursos médicos corroboram a dicotomia entre sertão/litoral, saúde/doença, moderno/atraso e enquadra o médico como herói e a sua atividade como patriótica. O médico seria a ponte que ataria o estado de Goiás às concepções acerca da modernidade e nacionalidade da época.
COMO CITAR ESSE ARTIGO
MENDES, José Antônio Alves. Sertão, Modernidade, Higiene E Nacionalidade: As Representações Do Discurso Médico. In:. Revista Me Conta Essa História, a.I, n.03, mar. 2020. ISSN 2675-3340. Disponível em:<https://www.mecontaessahistoria.com.br/post/sert%C3%A3o-modernidade-higiene-e-nacionalidade-as-representa%C3%A7%C3%B5es-do-discurso-m%C3%A9dico> Acesso em:
REFERÊNCIAS
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FONTE
SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE DE GOIÁS. Arquivos de Saúde Pública. Goiânia. v. 1. n. 1., 1951.
[1] Ser moderno, para o pensamento da elite brasileira da época, era ser civilizado. E tal estado de civilidade alcançava-se imitando padrões vigentes europeus. Embora os anos 30, munido de grande sentimento nacionalista e que buscava encontrar uma nova identidade nacional, de “redescoberta do brasil’, a importação do pensamento europeu não foi impedida.
[2] Trata-se de uma coletânea de publicações médicas da década de 1950. Os textos foram compilados e estavam arquivados na biblioteca da Secretaria Estadual de Saúde de Goiás.
[3] As bases epistemológicas da higiene deram origem a duas correntes para a propagação das doenças. A Contagionista, que associava a propagação de doenças de indivíduo a indivíduo, e proporcionou a criação de práticas como isolamento de doentes e quarentenas. E a infeccionista, que associava o contágio aos “miasmas” do ar, ao meio em que se vive, e proporcionou práticas de intervenção de ambientes insalubres, como esgoto e lixo, além de reformas urbanas e sanitárias.
[4] Salubridade enquanto estado das coisas e do meio e o quanto isso pode afetar a saúde. Higiene pública enquanto controle político-científico deste meio.
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