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MEIO SOL AMARELO: SOBRE TORNAR-SE QUEM SOMOS


 

RESENHA

 

LEPH - Revista Me Conta Essa História Set. 2020 Ano I Nº 009 ISSN - 2675-3340 UFJ.

 

Por Izabela de Assis Rocha


Mestranda em Psicologia na UFG e participante do clube de leitura escritAS.

 

Um sol amarelo, na verdade meio sol amarelo. Quando eu penso nesse título a primeira imagem que me vem é o nascer do dia. O momento em que o sol no horizonte anuncia mais uma transformação da noite. O meio do sol se tornando o dia. O livro da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, Meio Sol Amarelo, de 2006, remete justamente às transformações: de relações sociais, familiares e amorosas, de relações pessoais e também, de relações políticas em uma perspectiva macrossocial.

Somos levadas a acompanhar por aproximadamente uma década, entre 1960 e 1970, três personagens que crescem e se modificam diante de nossos olhos, tendo como pano de fundo uma guerra civil que interfere diretamente nessas modificações. Suas identidades e quem eles são estão em constante modificação segundo uma série de acontecimentos. Nesse sentido, a Psicologia Social e os estudos feministas nos permitem compreender como nossa identidade é forjada através de nossas relações (Bock; Gonçalves, Furtado, 2001; Carneiro, 1993). É o olhar do outro, que se torna nosso olhar sobre nós mesmos, que nos diz quem somos. A identidade é um constante processo de vir a ser, que em cada momento de nossas vidas é determinado por nossas relações.


As três personagens principais do livro são Ugwo, Ollana e Odenigbo. O primeiro, Ugwo, é um garoto de uma aldeia do interior da Nigéria que é levado por sua tia para trabalhar na casa de um professor universitário, Odenigbo. A criança tem um fascínio por aprender e se orgulha de trabalhar na casa de um professor e também de ter o que comer alimentos diversificados, uma realidade diferente do que conhecia. Ao longo de Meio Sol Amarelo, vemos Ugwo aprender inglês, descobrir sobre sua sexualidade e seus desejos, sabemos de seus medos e o vemos achar em Odenigbo uma referência em relação a quem gostaria de ser. Ollana. por sua vez, filha de uma família abastada formou-se na Inglaterra e deseja ser professora universitária, tornar o mundo um lugar melhor. A relação com sua família tem vários atritos, principalmente em relação a irmã gêmea, Kainene. As duas, embora tenham crescido juntas, são totalmente opostas. Enquanto Ollana é sonhadora, Kainene é prática e usa da influência de sua família para se impor no mundo.

O que me fascinou no livro foi a possibilidade de acompanhar a trajetória de formação e transformação identitária das três personagens. Chimamanda constrói personagens que são tão humanos quanto nós mesmos, tomam decisões que por vezes geram consequências negativas e sofrimento para aqueles ao seu redor e sofrem por isso. Nos aproximamos principalmente de Ugwo por sua inocência infantil, que é quebrada quando o mesmo vai para a guerra e se submete e pratica violências, nos fazendo ter repulsa pela personagem. Mas as personagens são complexas e não se resumem a apenas uma vivencia, a ações boas ou ruins, assim como nós mesmos somos.

Richard também se apresenta como uma personagem muito interessante, o homem branco que se sentia deslocado em seu próprio lar, na Inglaterra, e que por fascínio e até mesmo certa arrogância procura na Nigéria não somente um local de estudo, como também um local em que pode ser feliz. E é neste local que conhece Kaienne, que guia parte de suas decisões e sua própria vida. Os sentimentos que Richard me despertou foram ambíguos, por ao mesmo tempo demonstrar certa fragilidade e interesse pelo desconhecido e também um toque de arrogância de ser alguém, com maior prestígio social em uma sociedade diferente da sua.

Enquanto isso, Ollana tenta, ao deixar sua família abastada e viver com Odenigbo, criar uma nova versão de si, desprendida de tantos bens materiais e voltada para um bem maior que seria a educação. Ao mesmo tempo que a personagem tenta, por vezes ela não consegue se ater a quem gostaria de ser. E não somos todos assim? Uma inalcançável tentativa de sermos nossa melhor versão, aquela que pensamos que nos deixaria mais felizes e realizados, ao mesmo tempo que encontramos em nós obstáculos que impedem essa realização. E quando conquistamos aquilo que pensamos que nos deixaria plenamente realizados, novos desejos surgem, movimentando novamente quem pensamos que somos e quem queremos ser. E eu vejo Ollana sendo sua melhor versão em uma situação adversa, dolorosa como a guerra. É nessa situação tão dolorosa que ela e sua irmã que haviam se distanciado enquanto cresciam reencontram interesses em comum.

O livro ainda conta com um contexto de guerra civil. É também uma possibilidade de compreender a política da Nigéria e o enfrentamento que esse povo travou contra a colonização inglesa. As guerras civis e disputas do continente africano como um todo são pouco estudos no ensino básico do Brasil, invisibilizando a história dos povos africanos e contribuindo para a falta de conhecimento para além de uma perspectiva eurocêntrica. A leitura de obras como a de Chimamanda permitem a construção de outros olhares e compreensão de outras narrativas além das quais estamos habituadas a conhecer. Meio Sol Amarelo é, assim, um livro que desperta muitas emoções, algumas felizes e outras que dão aperto no peito e nos lembram da angustia que viver em situações extremas provocam. É uma leitura que nos toca em vários sentidos e que vale a pena ser lida, discutida e compartilhada.

 

COMO CITAR ESSE ARTIGO


ROCHA, Izabela de Assis. Meio Sol Amarelo: Sobre Tornar-Se Quem Somos. In:. Revista Me Conta Essa História, a.I, n.09, set. 2020. ISSN 2675-3340. Disponível em: https://www.mecontaessahistoria.com.br/post/meio-sol-amarelo-sobre-tornar-se-quem-somos . Acesso em:

 

REFERÊNCIAS


ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Meio Sol Amarelo. São Paulo: Schwarcz LTDA, 2006.

BOCK, A. M. B.; GONÇALVES, M. G. M.; FURTADO, O. (Orgs) . Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. São Paulo: Cortez, 2001.


CARNEIR, SUELI. Identidade Feminina. In Caderno IV. São Paulo: Geledés – Instituto da Mulher Negra, 1993.

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