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NECROPOLÍTICA E EPISTEMICÍDIO NO BRASIL DA PANDEMIA:OS RESULTADOS DE UMA DISCIPLINA DE NÚCLEO LIVRE.

DOSSIÊ

 

LEPH - Revista Me Conta Essa História Jan. 2021 Ano II Nº 013 ISSN - 2675-3340 UFJ.

 

Por Clarissa Adjuto Ulhoa ; Eder Mendes de Paula


[1] Universidade Federal de Jataí Docente do Curso de História

[2] Universidade Federal de Jataí Docente do Curso de História

 
 

APRESENTAÇÃO


É certo que a covid-19 nos pegou de surpresa. De um dia pro outro perdemos aquela sensação de que estamos em pleno controle dos nossos dias, do nosso futuro. O incerto nos bateu na cara, assim, sem sinal de piedade. De repente tivemos que remodelar a maneira de estar com quem amamos, o modo de tocar as atividades do trabalho e a forma como nos apresentamos ao mundo.


De máscara, qualquer conversa rápida demanda muito investimento, pois é preciso falar mais alto e deixar os ouvidos mais espertos. De máscara, sequer sabemos se o outro acolheu o que dissemos com riso ou com raiva, perdemos a medida do que o rosto descoberto nos informava. De máscara, a boca e as mãos se comunicam em uníssono, os gestos se transformam em hipérboles.


Nas bolsas e nos bolsos, junto com todos aqueles trecos cotidianos, recipientes contendo álcool se tornaram indispensáveis. Primeiro por causa da necessidade de manter tudo limpo. E depois porque pode ser encarado quase como um amuleto ou um escudo contra os nossos medos. É aquela pequena parcela de controle que ainda nos resta: respeitar tudo que recomendam os especialistas.


Embora a pandemia em si tenha surpreendido muitos(as) de nós, nem todos os aspectos que dela se desdobram podem ser encarados como novidade no Brasil. Em uma sociedade que ainda se encontra estruturada por mecanismos excludentes, responsáveis pela continuidade histórica de desigualdades sociais, raciais e de gênero, o resultado da pandemia só poderia ter cara de prelúdio.


Do início da pandemia pra cá, o que se apresenta diante de nós é um número enorme de mortes que poderiam ter sido evitadas. Evitadas se não fosse o escarro pela ciência, se não fosse a tara pelo capital, se não fosse os interesses eleitoreiros postos como prioridade. Falta de respaldo aos(às) profissionais de saúde e a outros(as) trabalhadores(as), falta de estrutura hospitalar, falta de saneamento básico, falta de moradia digna... Faltou e falta de tudo um tanto.

Em intacta abundância, embrenhados por todas as partes e por todos os lados, só o presidente, sua turma e sua bocarra. Bocarra solta, sem máscara, cuspidela a-deus-dará. É só uma pequena covid, toma aqui um café. Nada de isolamento social, a economia não pode parar. Entra ministro, sai ministro, não tem ministro. Toma cloroquina: é tiro e queda. Disse que não é coveiro, nem parece gente.


Em meio a todo o descaso dos poderosos, somado ao receio pela saúde das pessoas de nosso convívio, os(as) trabalhadores(as) que puderam desenvolver suas atividades em casa precisaram se reinventar quase que do dia pra noite. Muitos(as) de nós dormiu sem nunca ter participado de uma reunião a distância e acordou em uma sala on-line. Nessa toada, trabalhamos mais, descansamos menos. Mistura entre os universos pessoal e profissional. Estamos exaustos(as)!


Para nós, professores(as), assim como para os(as) estudantes, o ensino remoto apareceu quase como uma avalanche. Uma espécie de corrida se iniciou para que pudéssemos aprender o uso de ferramentas que antes não eram parte do cotidiano das nossas salas de aula. Em muitos casos, a ausência de cursos de formação tornou o processo ainda mais custoso e um tanto quanto solitário.


Diante do ensino remoto, se tornou inadiável, ainda, um debate mais acurado sobre outra mazela que persiste em nosso país: a exclusão digital. Por meio da fala dos representantes discentes, sobretudo, ficou escancarada a falta de acesso de muitos dos(as) nossos(as) estudantes não apenas à internet, como também à equipamentos tais como computadores. De que adiantaria a oferta de disciplinas se nem todos(as) poderiam acompanhar de forma apropriada?


Uma das alternativas encontradas pelas universidades públicas foi a abertura de processos seletivos por meio dos quais os(as) estudantes puderam requerer um apoio financeiro para custear a internet, por exemplo. Embora tal iniciativa não substitua a necessidade de políticas públicas robustas para mudar uma realidade que continua excludente, foi o que chancelou a retomada das aulas.


No âmbito da Universidade Federal de Jataí, as primeiras experiências com o ensino remoto ocorreram entre os meses de setembro e novembro de 2020. Foi dada aos(às) professores(as) a possibilidade de ofertarem disciplinas de núcleo livre, nas quais poderiam se matricular estudantes dos mais diversos cursos da instituição, a depender de seu interesse pelo tema proposto pelos(as) docentes.


Diante disso, decidimos que o caminho seria pensar uma disciplina que pudesse, de um lado, fornecer aos(às) estudantes momentos para expressarem leituras próprias e pessoais sobre suas experiências na pandemia e, de outro lado, apresentar um aparato teórico-conceitual que consideramos apropriado para uma análise competente da realidade pandêmica brasileira. Foi dessa maneira que nasceu a disciplina Necropolítica e Epistemicídio no Brasil da Pandemia.


Tomando como base o conceito de necropolítica, cunhado pelo camaronês Achille Mbembe, foi possível perceber que a pandemia da covid-19 revela como o poder no ocidente tem se fundado na produção sistemática da morte, pautado em marcadores sobretudo raciais. Mais do que o biopoder, que opera no sentido do deixar morrer, o necropoder atua no sentido do fazer morrer, respaldado pelos mecanismos próprios da política e da economia neoliberal.


Em paralelo, partindo do conceito de epistemicídio, debatido por autores(as) como Sueli Carneiro e Boaventura de Sousa Santos, foi possível construir uma crítica a perspectivas que, fundadas na lógica eurocêntrica, desconsideram a existência de uma série de conhecimentos construídos a partir das margens. Dessa maneira, pudemos pensar novos mundos possíveis, com base nos conhecimentos de sujeitos tais como, por exemplo, o indígena Ailton Krenak.


Como parte da avaliação da disciplina, propusemos aos(às) estudantes que escrevessem ensaios sobre a pandemia da covid-19 em que ao menos um dos conceitos essenciais em nossos debates estivessem presentes. Também pedimos que levassem em conta notícias publicadas nos meios de comunicação, bem como expressassem perspectivas próprias pautadas em suas experiências. Fora isso, ficaram livres para encontrarem quais seriam os percursos de suas autorias.


Os resultados desses percursos podem ser conferidos nesta edição especial da Revista Me Conta Essa História. Temos a felicidade de contar com textos que foram construídos a partir de perspectivas das mais diversas. Inclusive porque os(as) autores(as) pertencem tanto aos cursos de ciências humanas e sociais aplicadas –quanto aos de ciências agrárias e da saúde. Fato é que a disciplina propiciou um interessante exercício interdisciplinar, sobretudo.


Embora o comprometimento dos(as) estudantes e dos(as) professores(as) tenha propiciado uma proveitosa experiência no formato remoto, precisamos nos manter em alerta, pois os resultados exitosos não podem ser usados como desculpas para que o ensino presencial acabe diminuído em sua importância. Não há o que substitua a proximidade, disso sabemos melhor do que nunca. Esperamos pelo dia em que poderemos nos encontrar, sem máscara e sem tela.

 
 

COMO CITAR


ULHOA, Clarissa Adjuto, PAULA, Eder Mendes de. DOSSIÊ: Necropolítica e Epistemicídio no Brasil da Pandemia: os Resultados de Uma Disciplina de Núcleo Livre In:. Revista Me Conta Essa História, a.II, n.13, jan. 2021. ISSN 2675-3340. Disponível em: https://www.mecontaessahistoria.com.br/post/necropol%C3%ADtica-e-epistemic%C3%ADdio-no-brasil-da-pandemia-os-resultados-de-uma-disciplina-de-n%C3%BAcleo-livre. Acesso em:

 

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